29 de dez. de 2024

A CERCA, O CÓRREGO :: Marcílio Godoi

 


Quando falava de suas poucas reservas, de saúde e de dinheiro, meu velho pai dizia, “talvez dê pra chegar com a cerca no córrego!”. Desde sempre era isso, e a gente assim, nesse mistério, que cerca é essa? Que córrego é esse, meu deus?


Agora me encontro na mesma idade em que ele andava pela casa dizendo coisas como “cumê mais pôco, cumê mais pôco!”. E, claro, essa eterna indefectível e um tanto indecifrável imagem da cerca chegando lá embaixo, no córrego, que eu adoro.


O tempo me tirou muita coisa, devo reconhecer, mas com outras ele generosamente me presenteou. Saber fluentemente a língua do seu Marciano foi uma delas.


Não gosto de explicar imagem nenhuma a ninguém, traduzir é trair, pois que, como na poesia, se explicar, “trapaia tudo”. Mas hoje minha médica me deu o diagnóstico dela sobre o sopro que tenho no coração — sim, além de cabelos, perdi colágeno e elastina. 


Ela analisou os meus exames e proferiu o veredito: você “renovou o seu visto para mais uma temporada”. Fiquei feliz com a imagem alvissareira. E respondi: Quer dizer então que eu vou chegar com a cerca no córrego? — Então ela respondeu: Oi?


Aí tive que explicar a ela a metáfora do velho, que a cerca são os paus e o arame que a gente vai gastando para delimitar nossa passagem por aqui. Uma figura simples, trazida do léxico sertanejo, do fazer e do trazer que compõe a vida propriamente dita. Sendo o córrego, sua divisa, seu limite, ou, por assim dizer, a morte mesmo. Sendo que, finalizei, sobre o outro lado do córrego, nada se pode dizer.


No idioma marciano, Dra. Fernanda, chegar com a cerca no córrego é isso: humildemente fazer empatar nossos recursos com nossa existência, uma espécie de realização, de prodígio, que justifica, ao final, a nossa passagem por aqui.


Há uma certa dignidade em se poder dizer isso, não é mesmo? É como afirmar, senão a consagração, ao menos o cumprimento daquilo que foi acertado ao nascer: não deixar que falte pau nem arame ainda se estando muito longe do córrego da morte. Os gregos não têm o Aqueronte, rio que leva ao Hades, o reino dos mortos? Pois então.


Ela sorriu, gostou de ouvir meu pequeno devaneio de sobrevivente. Agora, enquanto escrevo, é que me dou conta, final de ano, a gente sempre fica meio bobo, né? E fica imaginando essas coisas, teremos estoque para mais uma jornada na terra? Estaremos bem aqui, esticando arame, fincando nossas modestas estacas no chão do agora?


Tudo isso lembra um pouco a feliz imagem do pau e da pedra no fim do caminho, do resto de toco um pouco sozinho que o Jobim magistralmente nos legou em Águas de Março.


Feliz 2025 pra você, doutora, obrigado por carimbar meu visto! 

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