28 de abr. de 2008

Escolha


O mundo globalizado volta-se todo para o futuro. A vida imita a urgência das apostas antecipadas que cria as tais bolhas de não-riqueza do capital financeiro. A tecnologia aponta para a superação de todas as descobertas, que já nascem com os dias contados, fadadas à obsolescência. Chamamos de progresso a essa forma de vida breve das coisas, fruto do trabalho humano que envelhece tão rapidamente quanto elas. 

O presente é uma partícula mínima de tempo, cada vez mais comprimida entre o que já foi e o que será. A rigor, pensem bem: o presente não existe. O futuro é um lugar gelado onde não vive ninguém, de onde só nos acenam promessas de velocidade. A depender das tecnociências hoje, no futuro nos deslocaremos ainda mais depressa, nos comunicaremos mais depressa, ganharemos e perderemos dinheiro mais depressa – e tentaremos envelhecer mais devagar. 
O passado tornou-se o único terreno seguro onde a imaginação pode armar sua tenda e contemplar o mundo em relativa tranqüilidade. Na vida em retrospecto, todas as nossas escolhas teriam sido corretas. Teríamos sido abolicionistas no século XIX, modernistas nos anos 1920, resistentes antifascistas em 1930-40, opositores firmes contra as duas ditaduras brasileiras. O passado nos poupa da dimensão trágica da escolha. 
Mas é no presente que o corpo está vivo. No presente é que se jogam os lances de dados do destino. Ele é tudo o que temos – e nos escapa.

Maria Rita Kelh 

27 de abr. de 2008

Tempo da delicadeza


Todo o Sentimento

Preciso não dormir
Até se consumar
O tempo da gente.
Preciso conduzir
Um tempo de te amar,
Te amando devagar e urgentemente.
Pretendo descobrir
No último momento
Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento
E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer
Até o amor cair
Doente, doente...
Prefiro, então, partir
A tempo de poder
A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,
Te encontro, com certeza,
Talvez num tempo da delicadeza,
Onde não diremos nada;
Nada aconteceu.
Apenas seguirei
Como encantado ao lado teu.
Chico Buarque


21 de abr. de 2008

Outoniza-te de Carlos Drummond de Andrade




Sou tua árvore-de-guarda e simbolizo teu outono pessoal. Quero apenas que te outonize com paciência e doçura. O dardo de luz fere menos, a chuva dá às frutas seu definitivo sabor. As folhas caem, é certo, e os cabelos também, mas há alguma coisa de gracioso em tudo isso: parábolas, ritmos, tons suaves...
Outoniza-se com dignidade, meu velho.



20 de abr. de 2008

Moto-contínuo :: Edu Lobo e Chico Buarque

Um homem pode ir ao fundo do fundo do fundo
se for por você
Um homem pode tapar os buracos do mundo
se for por você
Pode inventar qualquer mundo, como um vagabundo
se for por você
basta sonhar com você
Juntar o suco dos sonhos e encher um açude
se for por você
A fonte da juventude correndo nas bicas
se for por você
Bocas passando saúde com beijos nas bocas
se for por você
Homem também pode amar e abraçar e afagar seu ofício porquê
Vai habitar o edifício que faz pra você
E no aconchego da pele na pele, da carne na carne, entender
Que homem foi feito direito, do jeito que é feito o prazer
Homem constrói sete usinas usando a energia
que vem de você
Homem conduz a alegria que sai das turbinas
de volta a você
E cria o moto-contínuo da noite pro dia
se for por você
E quando um homem já está de partida, da curva da vida ele vê
Que o seu caminho não foi um caminho sozinho porquê
Sabe que um homem vai fundo e vai fundo e vai fundo
se for por você
Edu Lobo e Chico Buarque

16 de abr. de 2008

Prelúdio




E um coração diminuto 
vai-me brotando nos dedos

Garcia Lorca

Escrever


Imagem: Tarsila do Amaral

(...) e vou definitivamente ao encontro de um mundo que está dentro de mim, eu que escrevo para me livrar da carga difícil de uma pessoa ser ela mesma.
Em cada palavra pulsa um coração. Escrever é tal procura de íntima veracidade de vida. Vida que me perturba e deixa o meu próprio coração trêmulo sofrendo a incalculável, dor que parece ser necessária ao meu amadurecimento —amadurecimento? Até agora vivi sem ele!
É. Mas parece que chegou o instante de aceitar em cheio a misteriosa vida dos que um dia vão morrer. Tenho que começar por aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a raça humana em mim também cai. Aceitar-me plenamente? é uma violentação de minha vida. Cada mudança, cada projeto novo causa espanto: meu coração está espantado. É por isso que toda a minha palavra tem um coração onde circula sangue.
Tudo o que aqui escrevo é forjado no meu silêncio e na penumbra.
in UM SOPRO DE VIDA

29 de mar. de 2008

Eu que me Aguente Comigo

foto: Clarinda


Vi sempre o mundo independentemente de mim. 
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas, 
Mas isso era outro mundo. 
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja. 
Acima de tudo o mundo externo! 
Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim. 

Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterônimo de Fernando Pessoa

18 de mar. de 2008

Visão do Paraíso



Se o amor na sua doação absoluta os faz mais frágeis, 
ao mesmo tempo os protege como uma armadura. 
Os apaixonados voltaram ao Jardim do Paraíso, 
provaram da Árvore do Conhecimento
e agora sabem.
Lygia Fagundes Telles in: A disciplina do amor

11 de mar. de 2008

Três orquídeas :: Cecilia Meireles


As orquídeas do mosteiro fitam-me com seus
olhos roxos.
Elas são alvas, todas de pureza,
com uma leve mácula violácea para uma
pureza de sonho triste, um dia.
Que dia? que dia? dói-me a sua brevidade.
Ah! não vêem o mundo. Ah! não me vêem
como eu as vejo.
Se fossem de alabastro seriam mais amadas?
Mas eu amo o eterno e o efêmero e queria
fazer o efêmero eterno.
As três orquídeas brancas eu sonharia que
durassem,
com sua nervura humana,
seu colorido de veludo,
a graça leve do seu desenho,
o tênue caule de tão delicado verde.
Se elas não vêem o mundo, que o mundo as
visse.
Quem pode deixar de sentir sua beleza?
Antecipo-me em sofrer pelo seu
desaparecimento.
E paira sobre elas a gentileza igualmente frágil,
a gentileza floril
da mão que as trouxe para alegrar a minha
vida.
Durai, durai, flores como se estivésseis ainda
no jardim do mosteiro amado onde fostes
colhidas,
que escrevo para perdurardes em palavras,
pois desejaria que para sempre vos soubessem,
alvas, de olhos roxos (ah! cegos?)
com leves tristezas violáceas na brancura de
alabastro

2 de fev. de 2008

TODAS AS VIDAS :: CORA CORALINA

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço...
Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d’água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde de são-caetano.

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda,
desabusada, sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
- Enxerto de terra,
meio casmurra.
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha...
tão desprezada,
tão murmurada...
Fingindo ser alegre seu triste fado.

Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras.



In: Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965

1 de jan. de 2008

Humildade :: Cecília Meireles


Varre o chão de cócoras.
Humilde.
Vergada.
Adolescente anciã.
Na palha, no pó
seu velho sári inscreve
mensagens ao sol
com o tênue galão dourado.
Prata nas narinas,
nas orelhas,
nos dedos,
nos pulsos.
Pulseiras nos pés.
Uma pobreza resplandecente.
Toda negra:
frágil escultura de carvão.
Toda negra:
e cheia de centelhas.
Varre seu próprio rastro.
Apanha as folhas do jardim
aos punhados,
primeiro;
uma
por
uma
por fim.
Depois desaparece,
tímida,
como um pássaro numa árvore.
Recolhe à sombra
suas luzes:
ouro,
prata,
azul.
E seu negrume.
O dia entrando em noite.
A vida sendo morte.
O som virando silêncio.

in: Poesia Completa. Poemas Escritos na Índia

17 de jun. de 2007

Amizade :: Kafka

Andrew Wyeth




Entre muitas outras coisas, 
tu eras para mim uma janela 
através da qual podia ver as ruas. 
Sozinho não o podia fazer.

 Kafka em carta para um amigo






1 de jun. de 2007

Raduan Nassar (27 de novembro de 1935, Pindorama, SP )

“... rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando aberto para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira; o equilíbrio da vida depende essencialmente deste bem supremo, e quem souber com acerto a quantidade de vagar, ou a de espera, que se deve pôr nas coisas, não corre nunca o risco, ao buscar por elas, de defrontar-se com o que não é.”

Lavoura Arcaica

31 de mai. de 2007

Turista Acidental :: Affonso Romano de Sant'Anna

Fui fotografado à minha revelia, 
em frente a um templo egípcio 
no Metropolitan Museum de Nova York. 
À minha revelia,de novo, fotografado fui 
na 5a.Avenida às três e meia da tarde. 

Assim, um sem- número de vezes 
em frente ao Coliseu, 
nas ruínas de Machu Pichu, 
perto da Torre de Londres, 
junto à Catedral de Colônia, 
sobre as pedras da Acrópole ,em Atenas, 
nas mesquitas de Istambul 
e, evidente, em Juiz de Fora. 

Guardado estou 
em álbuns 
japoneses, italianos,americanos,alemães, franceses 
argentinos, senegaleses, 
disperso 
desatento 
como se aquele corpo 
não fosse meu. 

Quando mostram as fotos aos parentes e vizinhos 
sou pedra-porta-árvore-sombra-paisagem. 

Ninguém, reunindo as fotos, perguntará: 
-Quem é este constante figurante 
no flagrante do alheio instante? 

Disperso-dispersivo estou. 

Que álbum conterá a unidade perdida 
revelada do negativo 
perambulante que sou?

24 de mai. de 2007

ME TENS EM TUAS MÃOS:: JAIME SABINES (1926-1999) Tuxtla Gutiérrez, México

Me tens em tuas mãos
e me lês tal como um livro.
Sabes o que ignoro
e me dizes coisas que não me digo.
Aprendo em ti mais que em mim mesmo.
És como um milagre de todas as horas,
como uma dor sem lugar.
Se não fosses mulher serias meu amigo. 
Às vezes quero falar-te de mulheres
que a um lado teu persigo.
És como o perdão
e eu sou como teu filho.
Que bons olhos tens quando estás comigo?
Que distante te colocas e que ausente
quando à solidão te sacrifico!
Doce como teu nome, como um figo,
me esperas em teu amor até que arrimo.
És como minha casa,
és como minha morte, meu amor.

ME TIENES EN TUS MANOS

Me tienes en tus manos
y me lees lo mismo que un libro.
Sabes lo que yo ignoro
y me dices las cosas que no me digo.
Me aprendo en ti más que en mi mismo.
Eres como un milagro de todas horas,
como un dolor sin sitio.
Si no fueras mujer fueras mi amigo.
A veces quiero hablarte de mujeres
que a un lado tuyo persigo.
Eres como el perdón
y yo soy como tu hijo.
¿Qué buenos ojos tienes cuando estás conmigo?
¡Qué distante te haces y qué ausente
cuando a la soledad te sacrifico!
Dulce como tu nombre, como un higo,
me esperas en tu amor hasta que arribo.
Tú eres como mi casa,
eres como mi muerte, amor mío.