17 de fev. de 2017

SOLIDÃO :: Oswald de Andrade


Chove chuva choverando
que a cidade de meu bem
está-se toda se lavando

Senhor
que eu não fique nunca
como esse velho inglês
aí ao lado
que dorme numa cadeira
à espera de visitas que não vêm

Chove chuva choverando
que o jardim de meu bem
está-se todo se enfeitando
A chuva cai
cai de bruços

A magnólia abre o pára-chuva
pára-sol da cidade
de Mário de Andrade
A chuva cai
escorre das goteiras do domingo

Chove chuva choverando
que a cidade de meu bem
está-se toda se molhando

Anoitece sobre os jardins
Jardim da Luz
Jardim da Praça da República
Jardim das platibandas

Noite
Noite de hotel
Chove chuva choverando

José Oswald Sousa de Andrade (São Paulo, 11 de janeiro de 1890 - São Paulo, 22 de outubro de 1954)

16 de fev. de 2017

O homem que descalçou os sapatos :: Uri Zvi Greenberg (1896-1981)

Van Gogh 

Levantei-me e os meus dois olhos viram isto:
Não sabia quem era o homem,
o seu nome, ou a sua complicada história.

Era uma manhã toda de ouro,
e este homem marchou até ao poste eléctrico
como se caminhasse para uma fronteira,
e ali descalçou os sapatos,
e deixando-os para trás, como num limiar,
começou a andar descalço,
algures para além deste ponto final,
em direcção a um princípio sem fim, lá longe:
sem casa, ou cama, ou seio:
sem um pão ou um jarro de água…
leve e de mãos vazias.

Vi os seus ombros largos,
a sua alta estatura, os seus viris passos
indo embora, indo daqui para as suas distâncias,
sem a memória dos seus sapatos,
que esperam por ele.


8 de fev. de 2017

Vida bordada :: Silvana Conterno

Kira Nichols
Em muitos matizes
Agulhas perfuram
Profundamente
Nossos tecidos
Forma custosa
Demorada
Muitas voltas, laçadas
Ponto atrás, quando preciso
Ponto haste, dando direção
Correntinha para amenizar
Um coração em rococó
Marco preciso com ponto cruz
Para os vazios infindáveis
Tentamos o ponto cheio
E segundo dizem
É pelo avesso que se vê
O capricho de uma vida
Nós e fios cortados
Arremate que nunca finda

5 de fev. de 2017

Um novo poeta :: Linda Pastan

Encontrar um novo poeta
é como encontrar uma nova flor silvestre
na floresta. Não vemos

o seu nome nos livro de botânica, e
ninguém, quando lhes contamos, acredita
na sua estranha cor ou na forma como

as suas folhas crescem em filas inclinadas
descendo a largura inteira da página. Na verdade
a própria página cheira a vinho

derramado e ao aroma do mar
num dia enevoado – o odor de verdade
e de mentir.

E as palavras são tão familiares,
tão estranhamente novas, palavras
que quase escrevemos nós próprios, se por acaso

nos nossos sonhos existisse um lápis
ou uma caneta ou até um pincel,
se por acaso existisse uma flor.

3 de fev. de 2017

Todos irão sempre contra ti :: Hilda Hilst (Jaú- SP 21 de abril de 1930 - Campinas, 4 de fevereiro de 2004)

Todos irão sempre contra ti
porque tens pureza.
Porque o agitado de tuas mãos
é quase nostálgico.
Porque teus olhos
ficarão abertos
para quem os viu
uma única vez.
Todos irão sempre contra ti
porque hás de querer
um mundo novo e diferente.
Porque és estranho
e diferente para o nosso mundo.
És quase um louco
porque dás atenção
a toda gente.
Dirão que és poeta.
Porque a poesia aparece nos teus gestos
como aparece fé na oração de um crente.
Amaste quase todas as mulheres.
Mas o amor agora é tão difícil.
Não existes para mim.
Mas agitado, febril,
quase doente, és vivo...
Vivo demais para estar conosco.

Hilda Hilst. Pressagio : poemas primeiros. Revista dos Tribunais, 1950.