23 de mar. de 2024

Oleismos






 

O CAVALO NO VALE :: Hilda Hilst

 steve mitchell 

O cavalo no vale.

E mais além

O meu olhar mais verde do que o vale

E claro de esperança

E querer bem.


O vento no capim.

O vermelho cansado deste outono.

Os roseirais em mim.

E tudo me parece

Tão tranquilo e leve.


E com muito cuidado

Como quem tem na mão a flor e o quadro


Espero que a paisagem desta tarde


Adormeça

O cavalo no vale

O vento no capim

Os roseirais em mim.


  De Ode Fragmentária (1961)

18 de mar. de 2024

Se ao menos a morte :: Filipa Leal

Ela morria tantas vezes

em tiroteios à porta de casa

que já não sabia morrer para sempre

assim

de uma vez só.

Se ao menos se marcasse um dia

para a morte, uma hora certa

como no dentista

que apesar de tudo

nos faz esperar

onde apesar de tudo

não sabemos quando será a nossa vez.

Se ao menos a morte tivesse revistas

e gente na sala de espera

não estaríamos tão sós

tão vivos nessa ideia final

nesse desconforto.

Poríamos o nome na lista

quando estivéssemos prontos

sabendo que seria fácil desmarcar

marcar para outro dia

ou simplesmente

não comparecer.

Depois, ficaríamos com a dor,

com o terror

de passar sequer naquela rua

como ela à porta de casa.

Ela que morria tantas vezes

porque morria de medo de morrer.

Filipa Leal

17 de mar. de 2024

Três presentes de fim de ano :: Carlos Drummond de Andrade

Tibérius Drumond 

I


Querida, mando-te

uma tartaruguinha de presente

e principalmente de futuro

pois viverá uma riqueza de anos

e quando eu haja tomado a estígia barca

rumo ao país obscuro

ela te me lembrará no chão do quarto

e te dirá em sua muda língua

que o tempo, o tempo é simples ruga

na carapaça, não no fundo amor.


II


Nem corbeilles nem

letras de câmbio

nem rondós nem

carrão 69

nem festivais

na ilha d’amores

não esperes de mim

terrestres primores.

Dou-te a senha para

o dom imperceptível

que não vem do próximo

não se guarda em cofre

não pesa, não passa

nem sequer tem nome.

Inventa-o se puderes

com fervor e graça.


III


Sempre foi difícil

ah como era difícil escolher

um par de sapatos, um perfume.

Agora então, amor, é impossível.

O mau gosto

e o bom se acasalaram, catrapuz!

Você acha mesmo bacana esse verniz abóbora

ou tem medo de dizer que é medonho?

E aquele quadro (objeto)? aquela pantalona?

Aquela poesia? Hem? O quê? não ouço

a sua voz entre alto-falantes, não distingo

nenhuma voz nos sons vociferantes...

Desculpe, amor, se meu presente

é meio louco e bobo

e superado:

uns lábios em silêncio

(a música mental)

e uns olhos em recesso

(a infinita paisagem).



Carlos Drummond de Andrade


(1902-1987)

10 de mar. de 2024

DESENHO Cecilia Meirelles

  

Fui morena e magrinha como qualquer polinésia, 

e comia mamão, e mirava a flor da goiaba. 

E as lágrimas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras, 

e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam 


Isso era um lugar de sol e nuvens brancas, 

onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas... 

O eco, burlão, de pedra, ia saltando, 

entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas. 


Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,

e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,

que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas, 

pois a vida completa e bela e terna ali já estava. 


Com a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa! 

E o papagaio como ficava sonolento! 

O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos 

fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo. 


Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros, 

e os grandes cães ladravam como nas noites do Império. 

Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes 

moravam nos jardins sussurrantes e eternos. 


E minha avó cantava e cosia. Cantava 

canções de mar e de arvoredo, em língua antiga. 

E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos

e palavras de amor em minha roupa escritas. 


Minha vida começa num vergel colorido, 

por onde as noites eram só de luar e estrelas. 

Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras 

a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira. 


CECÍLIA MEIRELES 

in Mar Absoluto, 1945


6 de mar. de 2024

Um índio:: Caetano Veloso

Ricardo Stuckert 
 

Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante

De uma estrela que virá numa velocidade estonteante

E pousará no coração do Hemisfério Sul, na América, num claro instante

Depois de exterminada a última nação indígena

E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida

Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias

Virá

Impávido que nem Muhammad Ali

Virá que eu vi

Apaixonadamente como Peri

Virá que eu vi

Tranquilo e infalível como Bruce Lee

Virá que eu vi

O axé do afoxé Filhos de Gandhi

Virá

Um índio preservado em pleno corpo físico

Em todo sólido, todo gás e todo líquido

Em átomos, palavras, alma, cor

Em gesto, em cheiro, em sombra, em luz, em som magnífico

Num ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico

Do objeto-sim resplandecente descerá o índio

E as coisas que eu sei que ele dirá, fará

Não sei dizer assim de um modo explícito

Virá

Impávido que nem Muhammad Ali

Virá que eu vi

Apaixonadamente como Peri

Virá que eu vi

Tranquilo e infalível como Bruce Lee

Virá que eu vi

O axé do afoxé Filhos de Gandhi

Virá

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio


Compositor: Caetano Emmanuel Viana Teles Veloso

4 de mar. de 2024

Por vezes, não raro... Eucanãa Ferraz

Por vezes, não raro,

basta um gesto, sua borracha,

um quase nada de alvaiade,

um rasgo e só.


No entanto, o carvão

de certas palavras,

de alguns nomes,

não se apaga fácil.


Afogá-lo, inútil:

o maralto traz

de volta cada sílaba

em sal fortalecida.


Enterrá-lo? Logo renascerá:

árvore alta, trigo, praga.

No fogo, irrompe a letra,

inda mais sólida liga.


Há que esperar do esquecimento

o dente miúdo

e lento roer a nódoa na língua,

o travo no peito.


in Dessassombro. Rio de Janeiro: Editora Sette Letras, 2002.

5 de fev. de 2024

Discurso na seção de achados e perdidos:: Wislawa Szymborska

Fernand Leger

Perdi algumas deusas no caminho do sul ao norte,
e também muitos deuses no caminho do oriente ao ocidente.
Extinguiram-se para sempre umas estrelas, abra-se o céu.
Uma ilha, depois outra mergulhou no mar.
Nem sei direito onde deixei minhas garras,
quem veste meu traje de pelo, quem habita minha casca.
Morreram meus irmãos quando rastejei para a terra,
e somente certo ossinho celebra em mim este aniversário.
Eu saía da minha pele, desbaratava vértebras e pernas,
perdia a cabeça muitas e muitas vezes.
Faz muito que fechei meu terceiro olho para isso tudo.
Lavei as barbatanas, encolhi os galhos.

Dividiu-se, desapareceu, aos quatro ventos se espalhou.
Surpreende-me quão pouco de mim ficou:
uma pessoa singular, na espécie humana de passagem,
que ainda ontem perdeu somente a sombrinha no trem.


 In:_____. Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.