O amor
estranho circunstante
transforma a fugacidade
da hora
na eternidade
do instante
Uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. Clarice Lispector
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Alvorada lá no morro, que beleza
Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor
O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo
E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
Você também me lembra a alvorada
Quando chega iluminando
Meus caminhos tão sem vida
E o que me resta é bem pouco
Quase nada, de que ir assim
Vagando numa estrada perdida
Alvorada...
Alvorada lá no morro, que beleza
Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor
O sol colorindo...
Compositores: Carlos Moreira De Castro / Agenor de Oliveira / Zilda Goncalves
Tiramos o sábado pra trocar umas lâmpadas
fazer pequenos reparos pela casa
as torneiras com coriza
e a instalação de bienal
em nossos armários.
Tiramos o sábado pra passar
ramos de faxina pela casa toda
acariciar cada canto de sua planta
com a planta bassoura enfeixada
trocando o pó e o mofo
por perfume de lavanda e alecrim.
Tiramos o sábado pra ajeitar
o depósito, o quartinho,
como é carinhosamente chamado
por todos lá de casa
talvez pra compensar o descuido
com que o inoperamos.
Tiramos o sábado pra fazer
respirar sótão e porão,
massageando-lhes o coração
suas caixas adiadas
suas teias, traças e ratos
seus contratos imemoriais
inexoravelmente vencidos.
Tiramos o sábado inteiro
pra retocar o grelado da parede
atrás dos livros, meio úmidos,
dos documentos desguarnecidos
e aparar o mato que já cobria as janelas
tornando sem sol as páginas
de nossas manhãs.
Sábado passado, tiramos
o abandono e o dia todo
em pequenos gestos
as mãos no trabalho de súplica
fazendo um apelo à casa,
como imploramos ao País,
que nunca desista de nós.
Era tão claro o dia, mas a treva,
No galho mais firme da goiabeira
ergo meu trono de Rei menino.
Pássaros ressoam-me trombetas triunfantes
enquanto tatus-bolas passam-me a guarda imperial.
Galhadas insinuantes ao vento coroam-me
com louros perfumados de doce de tacho
e oferecem-me de bandeja deliciosos frutos
verdes, pois que os maduros têm bicho.
Corto a flor das ramagens e condecoro-me
nobre guerreiro a mim mesmo.
Afinal, os dragões brancos dos frutos maduros
foram todos dizimados pela minha ousada política
de antecipação da colheita.
Sob a copa de meu castelo
dois bambus estirados num arame
esvoaçam seus panos à minha glória
bandeira, capa, espada e lança
da minha insigne última batalha
contra os feudos vizinhos de além muro.
Do honroso combate hercúleo
resultaram muitas baixas
mas agora tudo está em paz
no Reino da Goiabas Verdes...
Esperem, ainda não!
Atrás dos manacás da cerca viva
espreitam-me outra vez
os malditos carrapatos
espalhados em minas de carrapichos
por todo o terreno!
Com meu vasto arsenal de mamonas,
entretanto, com alto poder
de destruição em massa
resistirei bravamente, em posição de sentido
até a morte, se preciso for!
Alto lá! por motivo de força maior
missão abortada, atenção!
Descansar, súditos!
Uma ordem, de repente, nos detém a todos:
Lição de casa, volver!
O gato e o pássaro
Uma cidade escuta desolada
O canto de um pássaro ferido
É o único pássaro da cidade
E foi o único gato da cidade
Que o devorou pela metade
E o pássaro deixa de cantar
E o gato deixa de ronronar
E de lamber o focinho
E a cidade prepara para o pássaro
Funerais maravilhosos
E o gato que foi convidado
Segue o caixãozinho de palha
Em que deitado está o pássaro morto
Levado por uma menina
Que não pára de chorar
Se soubesse que você ia sofrer tanto
Lhe diz o gato
Teria comido ele todinho
E depois teria te dito
Que tinha visto ele voar
Voar até o fim do mundo
Lá onde o longe é tão longe
Que de lá não se volta mais
Você teria sofrido menos
Só tristeza e saudades
É preciso nunca fazer as coisas pela metade.
Imagem pixabay
Quando falava de suas poucas reservas, de saúde e de dinheiro, meu velho pai dizia, “talvez dê pra chegar com a cerca no córrego!”. Desde sempre era isso, e a gente assim, nesse mistério, que cerca é essa? Que córrego é esse, meu deus?
Agora me encontro na mesma idade em que ele andava pela casa dizendo coisas como “cumê mais pôco, cumê mais pôco!”. E, claro, essa eterna indefectível e um tanto indecifrável imagem da cerca chegando lá embaixo, no córrego, que eu adoro.
O tempo me tirou muita coisa, devo reconhecer, mas com outras ele generosamente me presenteou. Saber fluentemente a língua do seu Marciano foi uma delas.
Não gosto de explicar imagem nenhuma a ninguém, traduzir é trair, pois que, como na poesia, se explicar, “trapaia tudo”. Mas hoje minha médica me deu o diagnóstico dela sobre o sopro que tenho no coração — sim, além de cabelos, perdi colágeno e elastina.
Ela analisou os meus exames e proferiu o veredito: você “renovou o seu visto para mais uma temporada”. Fiquei feliz com a imagem alvissareira. E respondi: Quer dizer então que eu vou chegar com a cerca no córrego? — Então ela respondeu: Oi?
Aí tive que explicar a ela a metáfora do velho, que a cerca são os paus e o arame que a gente vai gastando para delimitar nossa passagem por aqui. Uma figura simples, trazida do léxico sertanejo, do fazer e do trazer que compõe a vida propriamente dita. Sendo o córrego, sua divisa, seu limite, ou, por assim dizer, a morte mesmo. Sendo que, finalizei, sobre o outro lado do córrego, nada se pode dizer.
No idioma marciano, Dra. Fernanda, chegar com a cerca no córrego é isso: humildemente fazer empatar nossos recursos com nossa existência, uma espécie de realização, de prodígio, que justifica, ao final, a nossa passagem por aqui.
Há uma certa dignidade em se poder dizer isso, não é mesmo? É como afirmar, senão a consagração, ao menos o cumprimento daquilo que foi acertado ao nascer: não deixar que falte pau nem arame ainda se estando muito longe do córrego da morte. Os gregos não têm o Aqueronte, rio que leva ao Hades, o reino dos mortos? Pois então.
Ela sorriu, gostou de ouvir meu pequeno devaneio de sobrevivente. Agora, enquanto escrevo, é que me dou conta, final de ano, a gente sempre fica meio bobo, né? E fica imaginando essas coisas, teremos estoque para mais uma jornada na terra? Estaremos bem aqui, esticando arame, fincando nossas modestas estacas no chão do agora?
Tudo isso lembra um pouco a feliz imagem do pau e da pedra no fim do caminho, do resto de toco um pouco sozinho que o Jobim magistralmente nos legou em Águas de Março.
Feliz 2025 pra você, doutora, obrigado por carimbar meu visto!
Plano como a mesa na qual está colocado. Por baixo dele nada se move nem busca vazão. Sobre ele - meu hálito humano não cria vórt...