29 de mai. de 2022

Caderno dos mortos :: mar becker

 "os vivos morrem logo

são os mortos que morrem devagar


são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos


passam-se dias, e ainda encontramos os fios do seu cabelo espalhados pela casa


passam-se meses, e ainda vemos o livro

o marca-páginas guardando o fogo da última palavra lida


passam-se anos, e descobrimos na gaveta uma carta escrita do seu próprio punho e que nunca chegou a ser enviada


são lentos, os mortos

demoram-se nisto de nos revelarem em cadernos um amor que foi calado por toda uma vida


são lentos

como é lento o amor


como é lento reconhecer uma letra, que nos faz lembrar as mãos

como é lento imaginar as mãos, que nos fazem lembrar o pulso

como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa

como sangue


em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos


os mortos no entanto continuam sangrando


sangram por décadas, por gerações

sangram como mênstruo, pelos corpos das mulheres que habitam a casa

sangram no silêncio compartilhado entre mãe e filha

entre duas irmãs


e topamos com seu rosto renascido

em outros rostos


não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua

e que não conhecemos


sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí

eles acham jeito de voltar

de permanecer


eles acham jeito de surgir num sorriso

na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas

num gesto breve

qualquer


os mortos, os mortos

tão vivos"


Fonte: A mulher submersa. Editora Urutau.

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