2 de nov. de 2024

O LIVRO DOS DESENLACES :: Marcílio Godoi

Chega um dia, aliás, chega uma noite, mais precisamente. Chega uma hora afinal em que começamos a desconfiar ou bem nos damos conta em definitivo, que certos lugares pelos quais passamos, como os objetos perdidos nos táxis ou como o brilho das berinjelas pelo cesto, ou ainda, como com algumas pessoas com que cruzamos pelos elevadores, estamos todos nos olhando pela última vez. Tudo está em não saber o tempo todo disso: que a vida gira em torno de seus próprios desfechos.

Por mais dramático ou triste que isso pareça, a sensação não é ruim. É certo que as coisas, os primos queridos, um tio-avô, aquela tia torta, o vendedor de panos de prato no semáforo, a moça dos Correios, a dona na janela do coletivo e mesmo alguns edifícios e até cidades inteiras, países, chega um momento em que nos olham fundo como se a nos dizer algo urgente e silencioso, quase sedutor: adeus.

Vamos ver e é mesmo sobre essa espécie tão frágil e única de beleza que estão nos falando, uma alma que habita a entrega dos instantes que precedem todo encontro, todo convívio, toda partida: seu próprio fim.

Um dia nos chega enfim essa noite tão clara, essa notícia tão branca que cega, tão fácil de entender: compomos uma fileira sem fim de pessoas acenando do alto seu próprio remate, sua solução definitiva.

Dos pais, irmãos, amigos, os mais queridos, enfim, nem é bom lembrar que chegará esse instante. Transitórios que somos, sempre nos chegará esse tempo, o de nos vermos limpidamente nesse lugar de passagem. E então nos é dado enxergar de vez, de chofre, o óbvio: que nenhum sol nasce duas vezes.



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