30 de ago. de 2020

Toda Vida busca Centro :: Emily Dickinson

Toda Vida busca Centro –
Em parte expressa – ou quieta –
Há na Natureza Humana
Uma Meta –
Pouco aferrada – que seja –
Tão pura –
Que a presunção de Credibilidade
desfigura –
Tomar com cautela – Céu Frágil –
Alcançá­‑la
Seria ver a renda do Arco­‑íris
E tocá­‑la –
Mas perseverando – à Distância –
Ao léu –
Com a diligência lenta dos Santos –
No Céu –
Longe da Ventura da Vida –
De repente
A Eternidade desafia –
novamente –

24 de ago. de 2020

O viajante de Juan Bonilla



Ali de onde venho ninguém me retinha.
Sei que ninguém me espera aí para onde vou.

Pela janela desfilam imóveis as paisagens.
Seria maravilhoso não chegar a sítio nenhum.

Permanecer assim:
viajando de um lugar que já não existe
para outro que nunca existirá.

(poema incluído em Defensa personal (Antología poética 1992-2006), prólogo de Miguel Albero, Ranacimiento, Sevilha, 2009, p. 155).

22 de ago. de 2020

Tive uma jóia nos meus dedos :: Emily Dickinson


Tive uma jóia nos meus dedos — 
E adormeci — 
Quente era o dia, tédio os ventos — 
"É minha", eu disse —

Acordo — e os meus honestos dedos
(Foi-se a Gema) censuro — 
Uma saudade de Ametista 
É o que eu possuo —



I held a Jewel in my fingers — 
And went to sleep — 
The day was warm, and winds were prosy — 
I said “‘Twill keep” —

I woke — and chid my honest fingers, 
The Gem was gone — 
And now, an Amethyst remembrance 
Is all I own —

(c. 1861)

'Não sou ninguém. Poemas. [traduções Augusto de Campos]. Campinas: Unicamp, 2009.

21 de ago. de 2020

Itamara Ribeiro :: arte com bordado

Cores :: Tjiske Jansen

Sei qual é cor em que prefere calçar-se.
Sei qual é a cor em que prefere vestir-se.
Porém, caminhar não é o mesmo que dormir
e usar não é o mesmo que acordar.
Portanto perguntei-lhe: qual é a tua cor preferida para dormir,
qual é a tua cor preferida para acordar?
A cor dos teus olhos, respondeu-me. A cor da tua pele.
Não fui à procura. Não necessito de andar à procura para saber que
não existe nenhuma loja que venda edredões nessas cores.
Não há outra solução a não ser dormir
com ele para sempre.


17 de ago. de 2020

Gosto :: Débora Siqueira Bueno


Monet

Gosto do silêncio de casa
quando estou sozinha.
Ficar só,
prazer desimpedido do ser
pejado em acanhamento.
Estimo abraços quando o afeto é natural,
limpidez amiga,
amor cristalino.
Mas não me aborrece a falta do gesto.
Respeito tempos e distâncias.
Tão bom ter ao lado
quem comigo segue,
me acompanha ou espera
nas constantes incursões 
ao anterior,
ao interior.

Gosto de pisar em cascas de sementes,
ruído crepitante
que se casa tão bem aos passos;
caminhar sobre pedras,
espaços abertos,
descobrir percursos.
Aprecio o barulho de chuva,
quer mansa ou tempestade;
e o cheiro que a anuncia
e o aroma que a sucede e permanece
de terra farta,
agradecida.
Gosto de roça, de café com broa de fubá,
de gente simples
que conversa no alpendre
e conta casos.

Na cidade experimento o anonimato
e o prazer estético;
contemplo a arquitetura.
Praças bem traçadas,
linhas retas à Le Corbusier,
curvas de Niemeyer
e os vestígios
de diferentes antigos.
Ofusca a iluminação feérica;
vou ao cinema, ao teatro, às livrarias;
saboreio
o café expresso
a vida expressa
as expressões 
dessemelhantes,
as metamorfoses.

Posta sobre a cama sou colcha de retalhos,
cores e detalhes.
No entanto gosto da vida que trilhei
e amo os espaços
onde posso respirar fundo
e abrir os braços
em abraço ao sítio
onde encontro
a experiência
de pertença.

Mas nos lugares
que me são sagrados,
em respeito profundo e reverência
descalço as sandálias e,
de joelhos,
ponho a minha alma.


13 de ago. de 2020

ORAÇÃO A SÃO FRANCISCO, EM FORMA DE DESABAFO(D. Pedro Casaldáliga)

 Compadre Francisco
como vais de glória?
E a comadre Clara
e a irmandade toda?

Nós, aqui na Terra,
vamos mal vivendo,
que a cobiça é grande
e o amor pequeno.
O Amor divino
é mui pouco amado
e é flor de uma noite
o amor humano.

Metade do mundo
definha de fome
e a outra metade
de medo da morte.

A sábia loucura
do santo Evangelho
tem poucos alunos
que a levem a sério.
Senhora Pobreza,
perfeita alegria,
andam mais nos livros
que nas nossas vidas.

Há muitos caminhos
que levam a Roma;
Belém e o Calvário
saíram de rota.

Nossa Madre Igreja
melhorou de modo,
mas tem muita cúria
e carisma pouco.
Frades e conventos
criaram vergonha,
mas é mais no jeito
que por via nova.

Muitos tecnocratas
e poucos poetas.
Muitos doutrinários
e menos profetas.

Armas e aparelhos
trustes e escritórios,
planejam a história,
manejam os povos.

A mãe natureza
chora, poluída
no ar e nas águas,
nos céus e nas minas.
Pássaros e flores
morrem de amargura,
e os lobos do espanto
ganharam as ruas.

Murchou o estandarte
da antiga arrogância.
são de ódio e lucro
as nossas cruzadas.
Sucedem-se as guerras
e os tratados sobram;
sangue por petróleo
os impérios trocam.

O mundo é tão velho
que, para ser novo,
compadre Francisco,
só fazendo outro...

Quando Jesus Cristo
e Nossa Senhora
venham dar um jeito
nesta terra nossa,
compadre Francisco,
tu faz uma força,
e a comadre Clara
e a irmandade toda.

10 de ago. de 2020

Músculo, mas do coração :: Armando FREITAS FILHO

Terry Frost

Músculo, mas do coração.
A felicidade é indefensável
e esta casa está tão delicada
até nos pregos
construída e definitiva.
Pratos, copos, toda a louça
e o que é de vidro, vive
plenamente -- brilha
sem medo do esplendor.



fonte: Máquina de escrever. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

9 de ago. de 2020

–pai. você sempre liga sem ter nada especial a dizer :: Rupi Kaur


–pai. você sempre liga sem ter nada especial a dizer. você pergunta o que estou fazendo ou onde estou e se o silêncio entre nós se estende por uma vida dou um jeito de encontrar perguntas que façam a conversa continuar. o que eu queria mesmo dizer é. eu sei que o mundo te despedaçou. foi com tudo pra cima de você. não te culpo por não saber ser delicado comigo. às vezes fico acordada pensando em todos os machucados que você tem e nunca vai dizer. eu venho do mesmo sangue dolorido. do mesmo osso tão sedento por atenção que desabo em mim mesma. eu sou sua filha. eu sei que conversa-fiada é o único jeito que você conhece de dizer que me ama. porque é o único jeito que eu conheço.

3 de ago. de 2020

Lisboa de Tomas Tranströmer


jose maria rovira rusiñol

No bairro de Alfama os eléctricos amarelos cantavam nas
subidas.
Havia duas prisões. Uma delas era para os gatunos.
Eles acenavam através das grades.
Eles gritavam. Eles queriam ser fotografados!

"Mas aqui", dizia o revisor e ria baixinho, maliciosamente,
"aqui sentam-se os políticos". Eu vi a fachada, a fachada, a fachada
e em cima, a uma janela, um homem,
com um binóculo à frente dos olhos, espreitando
para além do mar.

A roupa pendia no azul. Os muros estavam quentes.
As moscas liam cartas microscópicas.
Seis anos mais tarde, perguntei a uma dama de Lisboa:
Isto é real, ou fui eu que sonhei?


22 de jul. de 2020

Observo :: Adam Zagajewski

Observo William Blake, que descobria anjos
nas copas das árvores todos os dias,
encontrou Deus nas escadas
da sua pequena casa e via luz em vielas sujas —
Blake que morreu cantando alegremente
numa Londres apinhada
de prostitutas, almirantes e milagres,
William Blake, gravador, que trabalhou
e viveu na pobreza mas não em desespero,
que recebeu sinais ardentes
do mar e do céu estrelado,
que nunca perdeu a esperança, pois a esperança
renascia sempre como a respiração,
vejo os que como ele caminharam por ruas sombrias,
na direcção da orquídea rósea da madrugada.

Adam Zagajewski
in “Eternal Enemies”. Editora Farrar, Straus and Giroux, EUA, 2008

20 de jul. de 2020

Poema Concreto de Thiago de Mello


Pedro Ruiz

O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso, 
perdida nos teus escuros, 
é como alguém que come
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que tens e falta
num lugar que nem sabes, 
mas que é tua vida, 
quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens. 

13 de jul. de 2020

Al-Mu'tamid, "Só eu sei ..."




Só eu sei quanto me dói a separação!
Na minha nostalgia fico desterrado
À míngua de encontrar consolação.
À pena no papel escrever não é dado
Sem que a lágrima trace, caindo teimosa,
Linhas de amor na página da face.
Se o meu grande orgulho não obstasse
Iria ver-te à noite: orvalho apaixonado
De visita às pétalas da rosa.

Al-Mutamid Alã-l-lãh ibn 'Abbãd Abu-l-Qasin Muhammad nasceu em Beja (Portugal) em 1040 e morreu em Agmat (Marrocos) em  1095.
Tradução de Adalberto Alves, do livro "O meu coração é árabe".

8 de jul. de 2020

Gato num apartamento vazio :: Wislawa Szymborska

Morrer  isso não se faz a um gato.
Pois o que há de fazer um gato
num apartamento vazio.
Trepar pelas paredes.
Esfregar-se nos móveis.
Nada aqui parece mudado
e no entanto algo mudou.
Nada parece mexido
e no entanto está diferente.
E à noite a lâmpada já não se acende.

Ouvem-se passos na escada

mas não são aqueles.
A mão que põe o peixe no pratinho
também já não é a mesma.

Algo aqui não começa

na hora costumeira.
Algo não acontece
como deve.
Alguém esteve aqui e esteve,
e de repente desapareceu
e teima em não aparecer.

Cada armário foi vasculhado.

As prateleiras percorridas.
Explorações sob o tapete nada mostraram.
Até uma regra foi quebrada
e os papéis remexidos.
Que mais se pode fazer.
Dormir e esperar.

Espera só ele voltar,

espera ele aparecer.
Vai aprender
que isso não se faz a um gato.
Para junto dele
como quem não quer nada
devagarinho
sobre as patas muito ofendidas.
E nada de pular miar no princípio.

Poemas. Companhia das Letras, 2011. Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien

Un gato en un piso vacío : Wislawa Szymborska

Morir, eso no se le hace a un gato.

Porque qué puede hacer un gato
en un piso vacío.
Trepar por las paredes.
Restregarse entre los muebles.
Parece que nada ha cambiado
y, sin embargo, ha cambiado.
Que nada se ha movido,
pero está descolocado.
Y por la noche la lámpara ya no se enciende.

Se oyen pasos en la escalera,
pero no son ésos.
La mano que pone el pescado en el plato
tampoco es aquella que lo ponía.

Hay algo aquí que no empieza
a la hora de siempre.
Hay algo que no ocurre
como debería.
Aquí había alguien que estaba y estaba,
que de repente se fue
e insistentemente no está.

Se ha buscado en todos los armarios.
Se ha recorrido la estantería.
Se ha husmeado debajo de la alfombra y se ha mirado.
Incluso se ha roto la prohibición
y se han desparramado los papeles.
Qué más se puede hacer.
Dormir y esperar.

Ya verá cuando regrese,
ya verá cuando aparezca.
Se va a enterar
de que eso no se le puede hacer a un gato.
Irá hacia él
como si no quisiera,
despacito,
con las patas muy ofendidas.
Y nada de saltos ni maullidos al principio.

6 de jul. de 2020

Nasce uma orquídea de Carlos Drummond de Andrade



“Entre as desesperanças da hora, e à falta de melhores notícias, venho informar-lhes que nasceu uma orquídea.
Nasceu, isto é, foi batizada. Seu nome de batismo é o do cronista Rubem Braga. A partir deste ano, há uma orquídea com o nome do Braga, ou, se preferem, o Braga virou orquídea.
Physosiphon Bragae Ruschi tem raízes esbranquiçadas, como Braga tem a cabeleira; seu caule primário é recoberto de bainhas agudas, como agudas são as observações que o Braga faz sobre a vida, os homens, as mulheres e as coisas. Suas flores são comumente geminadas, raramente solitárias. Aí parece haver uma contradição com a natureza do Braga, que combina solidão e geminação, mas, pensando bem, ele é um solitário orquidáceo comunicante, raramente desligado de outra flor.
Augusto Ruschi, sábio admirável, percebeu claramente a relação Braga-terra ao dedicar ao capitão a orquídea vermelho-púrpura. Não é todo mundo que merece virar nome de flor. A maioria merece justamente o contrário. No caso do Braga, se a orquídea souber, deve ficar satisfeita.”
Carlos Drummond de Andrade, “Nasce uma orquídea” , Jornal do Brasil (1970)

4 de jul. de 2020

POR QUE CANTAMOS :: Mario Benedetti

Se cada hora vem com sua morte

se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

1 de jul. de 2020

Prisão domiciliar :: Humberto Werneck

Em prisão domiciliar há três meses e meio, estou pensando em requerer livramento condicional. Acho que encararia numa boa até a tal tornozeleira eletrônica. Um par, caso a lei imponha isonomia ortopédica. 
Não me tome, por favor, ao pé (ou tornozelo) da letra: sem chilique ou coitadice, quero apenas que me seja permitido sair de vez em quando à rua, atividade a que me habituei, me lembro ainda, praticamente desde que aprendi a andar, e que o atual regime de reclusão veio converter em aventura temerária, numa espécie de safári urbano. Com o direito de ir, aceito o dever de vir, ou seja, de voltar à cela. De máscara, direitinho, mas sem nada de bandido mascarado. 
Falei em aventura temerária, em safári urbano, e acredite que não estou exagerando. Nesses três meses e meio, foram raras as ocasiões em que ousei abrir parênteses na rotina de encarcerado. Nenhuma delas, para meu desgosto, me levou à padoca para o semanal Café de Quinta em companhia do Ivan, do Paulo, do Edney, do João e, até recentemente, o Oswaldo, que teve a sabedoria de se mandar deste mundo antes que nele se instalasse a pandemia. Nem à livraria Zaccara, que ultimamente vinha sediando os encontros da Academia Perdiziana, não de letras, de Litros, de que já falei aqui, com direito, nas melhores noites, a canja do Tomzé, do Celso Adolfo ou do Renato Braz.
Saí três vezes apenas, e em todas experimentei um sobressalto, uma aceleração de batimentos cardíacos de contraventor em início de carreira. A primeira escapada foi para confiar ao Pedro, meu barbeiro, uma cabeleira que avançava, qual erva daninha, por sobre as orelhas, ameaçando eliminá-las da paisagem corporal. Confesso esta fraqueza: a cobertura capilar, quando excessiva, faz crescer em mim também o sentimento de que algo não vai bem no interior da caixa craniana. Se você me flagrar um dia com o coco rapado, esteja à vontade para deduzir que a situação, antes grisalha, ficou preta. 
A segunda evasão foi determinada por um acidente odontológico: como há males que vêm para o mal, em plena pandemia quebrei um molar. Sabe Deus a cautela com que venho desde então mastigando. A terceira escapada, por fim, no Dia das Mães – que, não me bastasse a orfandade, pela primeira vez passei sozinho –, pode ser em parte atribuída a um reflexo temporão do repórter que fui por tantos anos. Preparava meu café, bem cedo, quando me chegou, vindo da rua de cima, um alarido de exagerados decibéis. 
Burlando a amorosa vigilância dos filhos, enfurnados bem longe em suas tocas, enchi-me de coragem e fui, o coração aos pulos, conferir o que me parecia manifestação política em horário inusitado, no qual não é comum haver alguém já de pé pela Pátria. Não era; em frente a um prédio, desses que se chamam “Maison” ou “Château” alguma coisa, duas dezenas de pessoas tinham armado homenagem-surpresa a uma senhora, por certo mãe de alguém ali, cuja triunfal chegada à varanda pude presenciar. 
De volta à furna, levei comigo, além do desapontamento cívico, a sensação, experimentada nas ocasiões anteriores, de que me havia exposto a riscos insensatos. Será amostra disso que o pessoal deu de chamar de “novo normal”? Então vai ser assim a vida daqui para a frente? A compra de um pãozinho ali na esquina ganhará o vulto de empreitada audaciosa? Beijos e abraços serão substituídos, em caráter permanente, por cotoveladas, ainda que afetuosas? Vírus, agora, só de computador? Poliana anda dizendo que não, que tudo vai acabar bem, e mais, que “sairemos maiores” dessa pandemia. Na avaliação sombria de um nublado cupincha meu, porém, até mesmo o sexo presencial, “tá lembrando?”, não se dará doravante sem observância de severo protocolo. Como recita a claque do Capitão Cloroquina, diz ele, é bom já ir se acostumando, pois nosso autoenjaulamento preventivo “vai durar, por baixo, mais uns seis meses”. Deus não o ouça, amigo! Amigo?
***
Entre a Poliana e esse nuvem-negra, cada qual vai se ajeitando. A experiência, também aqui, é pedagógica, e ao falar dela o perigo é você resvalar para chatices de autoajuda. 
No caso dos avulsos, entre os quais me incluo, atravessar sem companhia as 24 horas do dia, cada uma delas com todos os seus 60 minutos, é coisa de acarretar, além de bocejos de tédio e surtos de melancolia, uns tantos riscos. Entre eles, o da pura e simples avacalhação da pessoa confinada: na ausência de testemunhas, pode dar-se progressiva e nem sempre consciente perda de compostura, potencialmente desastrosa lá adiante, quando enfim se restabelecer o convívio social – se é que um dia chegaremos lá, duvida o nuvem-negra. Numa dessas lives às quais ultimamente nos agarramos como náufragos – e que a alguns parecem mais interessantes que os encontros em carne e osso ora suspensos –, um conhecido contou que vem tomando mais cuidado desde o dia em que se flagrou, felizmente a tempo, quando saía de cueca para desovar o lixo no térreo. Muitos nem cueca estariam usando, observou alguém, com jeito, desconfiei, de quem falasse de si mesmo. 
De minha parte, ainda sem episódios indumentários capazes de chocar a vizinhança, tenho sentido, admito, uma necessidade do Anjo da Guarda que meus pais contrataram no meu primeiro dia, e cujos serviços, cada vez maiores, rudemente dispensei em algum degrau da adolescência. Seria bom tê-lo de volta, não mais para zelar pela higiene da alma, pois para essa já não parece haver detergente espiritual que dê conta. Um anjo da guarda, com minúsculas mesmo, para me chamar às falas se um dia, distraído, eu estiver prestes a ir ali embaixo, apanhar meu Estadão, nos mesmos trajes com que a alada & desvelada criatura me viu chegar ao mundo. Pandemia, pandemim.
Na condição de decano no condomínio onde vivo, e sendo nele o único morador na melindrosa faixa de risco, tenho sido o maluco, por ora solitário, que todos os dias, durante uma hora, se dá em espetáculo ao caminhar aceleradamente em torno dos dois predinhos do Cosme e Damião, só não tão antigos quanto o arfante, bufante, quase estertorante senhor que gira sem parar, qual hamster em gaiola, para no final contabilizar mais 5 quilômetros percorridos. Em três meses e meio, são mais de 500, suficientes para me levar, suponhamos, ao Rio de Janeiro. Taí, encaro. Mas só tem conversa se vier a tornozeleira de que já sou merecedor.

O Estado de S. Paulo, 30/6/2020

30 de jun. de 2020

TEXTOS DE SOMBRAALGUNS TEXTOS DE SOMBRA [ 1 ] :: Nina Rizzi

É uma exortação aos jovens para que
não fiquem tristes, já que existem a
natureza, a liberdade, Goethe, Schiller,
Shakespeare, as flores, os insetos, etc.
Frankz Kafka

 

Um jardim

Peço silêncio
Minha história é longa e triste como a cabeleira de Ofélia

É um jardim desenhado em meu caderno. Madrugada. Instante dilacerante
em que a luz é tentação e promessa porque algo está morto, a noite.

– Só queria ver o jardim.
– Sou meu próprio espectro.
– Não se deve julgar o espectro porque se chega a sê-lo.
– Você é real?
– A imagem de um coração que enclausura a imagem de um jardim pelo qual choro.
– Ils jouent la pièce en étranger.[1]
– Sinto o mundo chorar como língua estrangeira.
– Das ganze verkerhrte Wesen fort.[2]
– Another calling: my own words coming back…[3]

Apenas buscava um lugar mais ou menos propício para viver, quer dizer: um lugar pequeno onde cantar e poder chorar tranquila de vez em quando. Na verdade, não queria uma casa; Sombra queria um jardim.
– Só vim ver o jardim – disse.

Mas cada vez que visitava um jardim comprovava que não era o que buscava, o que queria. Era como falar ou escrever. Depois de falar ou de escrever sempre tinha que explicar:

– Não, não é isso o que eu queria dizer.
E o pior é que também o silêncio a traía.
– É por que o silêncio não existe – disse.
O jardim, as vozes, a escritura, o silêncio.
– Não faço outra coisa além de buscar e não encontrar. Assim perco as noites.
Sentiu que era culpada de algo grave.
– Eu acredito nas noites – disse.
Não soube responder a isso: sentiu que cravavam uma flor azul em seu pensamento para que não seguisse o curso de seu discurso até o fundo.
– É porque o fundo não existe – disse.
A flor azul se abriu em sua mente. Viu palavras como pequenas pedras espalhadas no espaço negro da noite. Depois, passou um cisne com rodinhas com um grande macaco vermelho no interrogativo pescoço. Uma menininha que parecia com ela montava o cisne.
– Essa menininha fui eu – disse Sombra.

Sombra está desconcertada. Diz para si mesma que, na verdade, trabalha demais desde que Sombra morreu. Tudo é pretexto para ser um pretexto, pensou Sombra assombrada.

1-V-1972

[1] Eles encenam a peça em estrangeiro.
[2] [então, a palavra misteriosa] Destruirá toda a essência mentirosa.
[3] Outro chamado: minhas próprias palavras voltando…

[1] (N.E.) Este capítulo, a citação e o texto que segue, são de uma folha datilografada e corrigida a mão por AP, em pasta com a menção INÉDITOS onde figuram também os demais sob a denominação “Textos de Sombra”, na ordem que aqui se apresentam. As frases finais de “Um jardim” pertencem a Henri Michaux, Cecilia Meireles, B. Brecht e Sydney Keyes.

Oda al pan de Pablo Neruda



E então,
Também a vida
Terá forma de pão,
Será simples e profunda,
Inumerável e pura.
Todos os seres terão direito
À terra e à vida,
E assim será o pão de amanhã,
O pão de cada boca,
Sagrado,
Consagrado,
Porque será o produto
Da mais longa e dura
Luta humana.
Não tem asas
A vitória terrestre:
Tem pão sobre os seus ombros,
E voa corajosa
Libertando a terra
Como uma padeira


Levada pelo vento.

(...)
y entonces
también la vida
tendrá forma de pan,
será simple y profunda,
innumerable y pura.
Todos los seres
tendrán derecho
a la tierra y a la vida,
y así será el pan de mañana,
el pan de cada boca,
sagrado,
consagrado,
porque será el producto
de la más larga y dura
lucha humana.
No tiene alas
la victoria terrestre:
tiene pan en sus hombros,
y vuela valerosa
liberando la tierra
como una panadera
conducida en el viento.

.................................................