31 de ago. de 2021

O quanto possas :: CAVÁFIS, Constantinos

Se não podes afeiçoar tua vida como queres,

deves ao menos tentar, o quanto

possas, isto: não a rebaixes

no excessivo comércio do mundo,

no excesso de palavras e de gestos.


Não a rebaixes levando-a para dar

passeios, exibindo-a o tempo todo

nas reuniões e comemorações

em que a tolice diária se compraz,

até fazeres dela uma estranha importuna.


 In: PAES, José Paulo (org e trad.). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.


25 de ago. de 2021

Carta para Tania Schucht :: Antonio Gramsci

2 de janeiro de 1928

Querida Tania,

E então o ano novo começou. É preciso fazer planos para uma vida nova, segundo a tradição: mas embora tenha pensado muito sobre tal plano, nunca consegui concretizá-lo. Essa sempre foi uma grande dificuldade em minha vida, desde meus primeiros anos racionais.

Naquela época, as escolas de ensino fundamental atribuíam, nessa época do ano, como tema de composição, a pergunta: O que você vai fazer da sua vida? Uma pergunta difícil, que resolvi pela primeira vez, aos oito anos de idade, fixando meus olhos na profissão de carroceiro. Descobri que o carroceiro reúne todas as características de utilidade e deleite: sacode as rédeas e guia os cavalos, mas, ao mesmo tempo, realiza um trabalho que enobrece o homem e lhe dá o pão de cada dia.

Permaneci fiel a essa orientação também no ano seguinte, mas por motivos que eu descreveria como extrínsecos. Se eu pudesse ser sincero, teria que dizer que minha aspiração mais viva era me tornar um Assistente de Tribunal. Por quê? Porque naquele ano veio à minha aldeia, como Assistente de Tribunal, um homem idoso que possuía um pequeno poodle muito charmoso, sempre vestido com esmero, com pequenas fitas vermelhas no rabo, uma capa minúscula nas costas, um colarinho envernizado e um pequeno freio de cavalo em torno de sua cabeça.

Não conseguia separar a imagem do pequeno poodle de seu dono ou de sua profissão, mas com muitos arrependimentos e por causa de uma lógica formidável e de um forte senso de dever que faria corar os grandes heróis, renunciei a essa perspectiva que tanto me seduzia. Sim, descobri que seria inútil tentar ser um Assistente de Tribunal e assim possuir um poodle tão maravilhoso: eu não sabia de cor os oitenta e quatro artigos da Constituição da República! Exatamente isso!

Eu havia chegado à segunda turma do ensino fundamental (a primeira revelação das virtudes cívicas do carroceiro!) e comecei a pensar, no mês de novembro, em fazer os exames de dispensa, para passar para a quarta turma, saltando sobre a terceira: Eu me considerava capaz de tanto, mas quando me apresentei ao Diretor de Estudos para atender ao apelo protocolado, me deparei com, à queima-roupa, a pergunta: Mas você conhece os oitenta e quatro artigos da Constituição? Eu nunca sequer tinha pensado nesses artigos: tinha-me limitado a estudar a noção de direitos e deveres do cidadão contidos no meu livro.

Aquela foi uma advertência terrível para mim, que me impressionou mais porque tinha participado, pela primeira vez, no passado dia 20 de setembro, do desfile comemorativo, com uma pequena lanterna veneziana, e tinha gritado com os outros: Viva o Leão de Caprera! Viva os mortos de Staglieno (não me lembro exatamente se chamei os mortos ou o profeta de Staglieno; possivelmente ambos, para variar), certamente porque era para ser promovido um concurso e poder conquistar os títulos jurídicos, tornando-me um cidadão ativo e perfeito. No entanto, não conhecia os oitenta e quatro artigos da Constituição. Que tipo de cidadão eu era, então? E como eu poderia aspirar tão ambiciosamente a me tornar um Assistente de Tribunal e possuir um cachorro com uma fita e uma capa? O Assistente de Tribunal é uma engrenagem na roda do estado (mas eu tinha pensado que ele era a roda inteira); ele é um depositário e guardião da lei, também um protetor contra qualquer tirano que queira nos pisar. E eu ignorei os oitenta e quatro artigos!

Assim os meus horizontes ficaram limitados, e mais uma vez aclamei as virtudes cívicas do carroceiro, que de qualquer maneira podia ter um cão, mesmo ele, e deixá-lo ficar completamente sem fitas ou capa. Veja como os planos construídos de maneira muito rígida e esquemática explodem, destruindo-se contra a dura realidade, quando se tem uma consciência vigilante e zelosa.


Abraços,

Antonio

Tania Schucht era cunhada de Antonio Gramsci, e estava encarregada de seus negócios. A carta provavelmente foi enviada da ilha-prisão de Ustica. 

O dia 20 de setembro é a data em que se celebra a unificação da Itália. É a data em que, em 1870, a brigada dos Bersaglieri entrou em Roma e pôs fim ao poder temporal do Papa. A data não é celebrada no Vaticano. Os Bersaglieri surgiram na Sardenha, onde Gramsci nasceu e cresceu. 

Garibaldi era o Leão de Caprera. Caprera é uma pequena ilha na costa da Sardenha, para onde Garibaldi foi ao se aposentar. Ele nasceu em Nice. 

Staglieno é o cemitério em Gênova em que estão sepultadas muitas das grandes figuras da classe política italiana, inclusive o revolucionário Mazzini (descrito por Marx como ‘aquele asno eterno’). 

24 de ago. de 2021

Luiz Roberto Nascimento Silva :: O alfabeto da devassa


Van Gogh 

Por mais duro que pareça agora

isso tudo passará.

A tempestade irá embora.


As nuvens pesadas se dissiparão.

Poderemos olhar o céu,

sol poente; novamente


Guardaremos a lição:

para cada azul cintilante

brilhando sob nossas cabeças


existe igual noite de trevas

mosaico invertido,

grafite da escuridão.



SILVA, Luiz Roberto Nascimento. O alfabeto da devassa. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

17 de ago. de 2021

O portão :: Lêdo Ivo

Monet

O portão fica aberto o dia inteiro

mas à noite eu mesmo vou fechá-lo.

Não espero nenhum visitante noturno

a não ser o ladrão que salta o muro dos sonhos.

A noite é tão silenciosa que me faz escutar

o nascimento dos mananciais nas florestas.

Minha cama branca como a via-láctea

é breve para mim na noite negra.

Ocupo todo o espaço da mundo. Minha mão desatenta

derruba uma estrela e enxota um morcego.

O bater de meu coração intriga as corujas

que, nos ramos dos cedros, ruminam o enigma

do dia e da noite paridos pelas águas.

No meu sonho de pedra fico imóvel e viajo.

Sou o vento que apalpa as alcachofras

e enferruja os arreios pendurados no estábulo.

Sou a formiga que, guiada pelas constelações,

respira os perfumes da terra e do oceano.

Um homem que sonha é tudo o que não é:

o mar que os navios avariaram,

o silvo negro do trem entre fogueiras,

a mancha que escurece o tambor de querosene.

Se antes de dormir fecho o meu portão

no sonho ele se abre. E quem não veio de dia

pisando as folhas secas dos eucaliptos

vem de noite e conhece o caminho, igual aos mortos

que todavia jamais vieram, mas sabem onde estou

— coberto por uma mortalha, como todos os que sonham

e se agitam na escuridão, e gritam as palavras

que fugiram do dicionário e foram respirar o ar da noite que cheira a jasmim

e ao doce esterco fermentado.

os visitantes indesejáveis atravessam as portas trancadas

e as persianas que filtram a passagem da brisa e me rodeiam.

Ó mistério do mundo! Nenhum cadeado fecha o portão da noite.

Foi em vão que ao anoitecer pensei em dormir sozinho

protegido pelo arame farpado que cerca as minhas terras

e pelos meus cães que sonham de olhos abertos.

À noite, uma simples aragem destrói os muros dos homens.

Embora o meu portão vá amanhecer fechado

sei que alguém o abriu, no silêncio da noite,

e assistiu no escuro ao meu sono inquieto.


 Poesia completa (1940-2004). Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.

10 de ago. de 2021

Acreditava antigamente :: Heirich Heine: "Ehmals glaubt ich, alle Küsse"

Man Ray

Acreditava antigamente

Que todo beijo que me tiram,

Ou que recebo de presente,

Fosse por obra do destino.


Deram-me beijos e beijei,

Antes com tanta seriedade,

Como se obedecesse às leis

Que regem a necessidade.


Agora sei como é supérfluo

E não me faço de rogado,

Vou dando beijos em excesso,

Incrédulo e despreocupado.

....................

Ehmals glaubt ich, alle Küsse,

Die ein Weib uns gibt und nimmt,

Seien uns, durch Schicksalsschlüsse,

Schon urzeitlich vorbestimmt.


Küsse nahm ich, und ich küßte

So mit Ernst in jener Zeit,

Als ob ich erfüllen müßte

Thaten der Notwendigkeit.


Jetzo weiß ich, überflüssig,

Wie so manches, ist der Kuß,

Und mit leichtern Sinnen küß ich,

Glaubenlos im Überfluß.




HEINE, Heinrich: "Uma gaivota. Poemas, 1830-1839". In:_____. VALLIAS, André (org., intr. e trad.). Heine, heim? Poeta dos contrários. São Paulo: Perspectiva, Goethe Institut, 2011. 

3 de ago. de 2021

Tempo das rupturas :: Adília Lopes

    


      Acabou

      o tempo das rupturas

      

     Quero

      ser

      reparadora

      de brechas.

30 de jul. de 2021

Arcangelo Ianelli ( 18.07.1922 São Paulo - 26.05.2009 São Paulo)










 

Ausência :: Lope de Vega

Abater-se, atrever-se, estar furioso,

áspero, brando, liberal, esquivo,

animado, exaurido, morto, vivo,

leal, traidor, covarde, corajoso,


não ver, fora do bem, centro e repouso,

mostrar-se alegre, triste, humilde, altivo,

desgostoso, valente, fugitivo,

satisfeito, ofendido, temeroso;


furtar o rosto ao claro desengano,

beber veneno por licor suave,

esquecer o proveito, amar o dano;


acreditar que o céu no inferno cabe,

ceder a vida e a alma a um desengano;

isto é amor, quem o provou bem sabe.


****

Ir y quedarse, y con quedar partirse,

partir sin alma, y ir con alma ajena,

oír la dulce voz de una sirena

y no poder del árbol desasirse;


arder como la vela y consumirse

haciendo torres sobre tierna arena;

caer de un cielo, y ser demonio en pena,

y de serlo jamás arrepentirse;


hablar entre las mudas soledades,

pedir prestada, sobre fe, paciencia,

y lo que es temporal llamar eterno;


creer sospechas y negar verdades,

es lo que llaman en el mundo ausencia,

fuego en el alma y en la vida infierno. 


Lope de Vega

(1562-1635)


Fonte: 

https://diplomatique.org.br/a-lira-multipla-de-lope-de-vega/

26 de jul. de 2021

Hiroki Takeda: ilustração

 



























In utilizar :: FLANZER, Sandra Niskier

Giorgio Morandi

Gastar, gastar, usar a vida

Deixar que escorra, provar da bica

Gastar, roer, raspar do fundo

Fincar as unhas no umbigo do mundo.

Cravar as mãos, roçar, pegar,

Ir ao encontro de, ralar, ralar

Usar agora, desgastar, se engastar

No tempo breve que passa justo.

Perder, perder, ceder ao outro

O resto pífio desse plano torto

De achar que vivo é o que se encaixa

Quando é a morte que se guarda em caixa.

Porvir, puir, e por ir, desperdiçar

Do impossível, cruzar a faixa

Fuçar o real que no acaso sobrar

E torná-lo inútil a ponto de gostar.

 In:_____. Do quarto. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2017

20 de jul. de 2021

Por que : Tarso de Melo (Santo André, 1976)

por que


retrair-se à agenda alheia — desistir


dos cinco sentidos — por que o relógio,


as distâncias que cria, o mover-se


a sua sombra — por que as chaves


giradas, o diário trancar-se com a família


— por que a gravata, esperar o fim do dia,


dos dias — por que o espelho, o asseio,


a rotina dos sapatos — por que as senhas,


os códigos, os telefones de emergência,


endereços — por que os passos, os prazos


exíguos, as datas consumidas


como aspirinas


 


[de Carbono, 2002]

19 de jul. de 2021

Eugénio de Andrade ::Arte dos versos

Camille Pissarro

Toda a ciência está aqui,

na maneira como esta mulher

dos arredores de Cantão,

ou dos campos de Alpedrinha,

rega quatro ou cinco leiras

de couves: mão certeira

com a água,

intimidade com a terra,

empenho do coração.

Assim se faz o poema.


ANDRADE, Eugénio de. Rente ao dizer. Fundação Eugénio de Andrade, 1992.

12 de jul. de 2021

Primeiro amor :: Adília Lopes

                                                                               Salvador Dali 


      Primeiro

      amor

      e não pedi

      oiro


       Depois pedi oiro e não pedi

      amor


      Depois

      só pedi

      pão


      depois

      perdi-me.

29 de jun. de 2021

Eucanaã Ferraz: "18.05.1961"


Sandro Botticelli

Nasci num lugar pobre,

onde o hospital era longe,

onde era longe a estrada

e os anjos não conheciam:


Nasci mês de maio, azul

de tardes macias,

de pai José,

mãe Maria.


Batizaram-me: Terra Prometida.

Terra pobre, onde a felicidade passa 

longe, mas daqui eu a vejo

e todo o meu corpo brilha.


FERRAZ, Eucanaã. "18.05.1961". In:_____.  Livro primeiro. Rio de Janeiro: Edições do autor, 1990. 

São Pedro :: Fernando Pessoa


Tu, que Diabo?, és velho.
És o único dos três que traz velhice
Às festas. Tuas barbas brancas
Têm contudo um ar terno
A que o teu duro olhar não dá razão.
Parece que com essas barbas brancas
Por um fenómeno de imitação
Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

Carcereiro do céu, isso é o que és.
Basta ver o tamanho dessas chaves –
As que Roma cruzou no seu brasão.
Segundo aquele passo do Evangelho
Do «Tu és Pedro» etcetera (tu sabes),
Que é, afinal uma fraude
Meu velho, uma interpolação.

Carcereiro do céu, que chaves essas!
Nem dão vontade de ser bom na terra,
Se, segundo evangélicas promessas
Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.
Isso – fecharem-me – não quero eu,
Nem com Deus e o que é seu
Que o estar fechado faz-me mal
Até na beatitude do teu céu,
Entre os santos do paraíso,
(A liberdade – Deus dá a Deus –
Um Deus que não sei se é o teu),
O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu
Faz-me terríveis cócegas no juízo.

Enfim, que direi eu de ti, amigo,
Que não seja uma coisa morta,
Anti-popular, gongórica,
Por fruste deselegante,
Como de quem, sem saber nada, exausto,
Começo por duvidar bastante,
Desculpa-me chaveiro antigo,
De que tivesses existência histórica.

Mas isso, é claro, não importa
Se nos trazes
A alegria da singeleza
Ou a bondade que não sabe ter tristeza.
O pior é que nada disso fazes.
O teu semblante é duro e cru
E as barbas que roubaste ao Deus que tens
Só arrancam aos dandies teus loquazes
Ditos de dandies cínicos desdéns.
Que diabo, és uma série de ninguéns.
O Santo são as chaves, e não tu.

Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,
Para outros as barbas já citadas,
Para uns o tal fatídico chaveiro
Que fecha à chave as almas sublimadas.
Para uns tu fundaste a Roma do Papado
(Andavas bêbado ou enganado
Ou esqueceste
O teu posto quando o fizeste)
E para outros enfim, como é o povo
E segundo as ideias que ele faz,
És quem lhe não vem dar nada de novo –
Umas barbas com S. Pedro lá por trás.

É difícil tratar-te em verso ou prosa,
Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,
Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser
E a alma mais humilde é clamorosa
De qualquer coisa que se possa ver,
Em sonho até, qual se estivesse perto.

Olha, eu confesso
Que nunca escreveria
Este vago poema, em que me apresso
Só para me ver livre do teu nada,
Se não fosse para dar um cunho
A este livro da trilogia
(Santo António, S. João, S. Pedro –
De popular, que bem que soa!)

Mas porque diabo de intuição errada
É que vieste parar a Junho
E a Lisboa?

Isto aqui ainda tem
Um sorriso que lhe fica bem,
Que até, até
No teu dia,
(Ó estupor velho
Como um chavelho,)

Nas ruas
O povo anda com alegria,
É fé,
Não em ti nem nas barbas tuas
Mas no que a alegria é.

Olha, acabei.
Que mais dizer-te, não sei.
Espera lá, olha
Roma, fingindo que viceja,
Lentamente se desfolha.
Teu último gesto seja,
Um gesto volvente e mudo.
Se tens poder milagroso,
Se essas chaves abrem tudo
Deixa esse céu lastimoso.
Deixa de vez esse céu,
Desce até à humanidade
E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,
As portas do Inferno, e da Verdade.


9.6.1935.