29 de mai. de 2022

Caderno dos mortos :: mar becker

 "os vivos morrem logo

são os mortos que morrem devagar


são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos


passam-se dias, e ainda encontramos os fios do seu cabelo espalhados pela casa


passam-se meses, e ainda vemos o livro

o marca-páginas guardando o fogo da última palavra lida


passam-se anos, e descobrimos na gaveta uma carta escrita do seu próprio punho e que nunca chegou a ser enviada


são lentos, os mortos

demoram-se nisto de nos revelarem em cadernos um amor que foi calado por toda uma vida


são lentos

como é lento o amor


como é lento reconhecer uma letra, que nos faz lembrar as mãos

como é lento imaginar as mãos, que nos fazem lembrar o pulso

como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa

como sangue


em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos


os mortos no entanto continuam sangrando


sangram por décadas, por gerações

sangram como mênstruo, pelos corpos das mulheres que habitam a casa

sangram no silêncio compartilhado entre mãe e filha

entre duas irmãs


e topamos com seu rosto renascido

em outros rostos


não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua

e que não conhecemos


sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí

eles acham jeito de voltar

de permanecer


eles acham jeito de surgir num sorriso

na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas

num gesto breve

qualquer


os mortos, os mortos

tão vivos"


Fonte: A mulher submersa. Editora Urutau.

23 de mai. de 2022

Aforismo :: Carolina Noémia Abranches de Sousa Soares ( 20 Setembro 1926 (Catembe, Moçambique - 04 Dezembro 2002 Cascais, Portugal)

Claudia Interrante

Havia uma formiga

compartilhando comigo o isolamento

e comendo juntos.

Estávamos iguais

com duas diferenças:

Não  era interrogada

e por descuido podiam pisá-la.

Mas aos dois intencionalmente

podiam pôr-nos de rastos

mas não podiam

ajoelhar-nos.

L'Homme Révolté :: Hélio Pellegrino

Dana Carter 

Venho de um negro tempo irredutível,

anterior a mim.

Vou para um negro tempo desmedido,

infinito campo de ébano

onde me apagarei.

De uma escarpa a outra,

transfixado entre negro e negror,

danço —  centelha breve — o meu furor.

22 de mai. de 2022

ALTA GASTRONOMIA. E FUNDA :: Marcílio Godoi

Quer souflé, entrecôte, foie gras?


Não, obrigado.

Quero arroz soltinho com feijão cozido na folha de louro e farinha crocante, frita com cebola picadinha e o dente de alho esmurrado que a mãe colocava só para abrir as narinas da gente e avisar logo à casa inteira que o meio-dia chegara.


Quer petit fours, croissant, pain au chocolat?


Quero não, pode deixar.

Quero é pão de queijo mesmo, quentinho, com ou sem manteiga, mas com uma fatia de minas generosa, branquinha, no meio, crostando entre os molares enxaguados de café bem ralo e doce, como o que fazia minha mãe, no centro geométrico de todas as tardes de minha vida, mesmo muito depois que saí de casa.


Quer petit gateau, vol-au-vent, crème brûlée?


Não, agradecido.

Quero é doce de figo em calda dourada, o coração verde que minha mãe colocava em potes de vidro emergenciais sobre a tábua curva do armário. Quero adentrar o escuro desse armário cheio de quitandas e ouvir de novo as histórias de nossas mil e uma noites familiares, e sua astronômica simplicidade.


Sinto-me como um ingrediente de Deus quando experimento qualquer coisa que me recupere na memória esse alimento que fala-me a todos os sentidos. Sou feito dessa comida. Mal sabem os renomados chefs cuisiniers contemporâneos que há mais de cinco, seis décadas, minha mãe já havia inventado a cozinha molecular. Sim, uma culinária toda à base de um ingrediente atômico indivisível e incondicional muito conhecido, presente em todas as culturas desse mundo, o amor.


Quer visitar a Grande Muralha da China, Machu Picchu, o Taj Mahal?


Não, fica para uma outra vez.

Quero é ir para Minas, ver minha mãe enxugar apressada as mãos no avental antes de me receber na cozinha com o abraço cheirando a cravo. Quero me sentir outra vez o pequeno astronauta incrustado para sempre em suas nuvens de ambrosia.


"A divina Cozinha de dona Etelvina" 

16 de mai. de 2022

A vida é como a água :: Paulina Chiziane

Georgia O'Keeffe

A vida é como a água, nunca esquece o seu caminho. A água vai para o céu mas volta a cair na terra. Vai para o subterrâneo mas volta á superfície. A vida é um eterno ir e voltar. O corpo é apenas uma carcaça onde a alma constrói a sua morada...
O sétimo juramento. Maputo: Ndjira, 2009.

10 de mai. de 2022

Poeminha Nupcial de Millôr Fernandes




A linda noivinha 
no altar se casará 
com o rapaz que fez tudo 
pra não ir até lá. 


Millôr Fernandes, in "Pif-Paf"

9 de mai. de 2022

Duramos indefinidamente :: .BRECHT, Bertolt.

Bruce Rolff

Duramos indefinidamente

Então tudo mudou

Mas como somos finitos tudo continua igual


Obras reunidas em 20 volumes . Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1967.

1 de mai. de 2022

Distração :: Adriane Garcia


O mundo e seus assuntos
Mundanos
A beleza da xícara trincada
Ficando despercebida
Entre os gritos dos socos
Na mesa
Todos resolveram parar
O trabalho e os dias
Para gritar
Truco!
Ganha quem engana melhor
Ganha a perspicácia
O poeta perdendo
Palavras como
Acácia
Uma feiura de implorar
Música
A Beleza desarrumadinha
Do lado, calada
Esperando vez.

18 de abr. de 2022

Água marinha :: Alex Varella




Dois pedacinhos de mar

duas pedrinhas

de água

duas pedrinhas

de nada

teus olhos fazem existir o mar


 In:_____. céu em cima / mar em baixo. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012.

11 de abr. de 2022

Elegiazinha :: ASCHER, Nelson.

Remedios Varo

[i. m. nikita (gata da Inês)]


Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.




In:_____. Parte alguma. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

1 de abr. de 2022

Wislawa Szymborska :: Vida difícil com a memória


Sou um péssimo público para a minha memória.
Ela quer que eu ouça sua voz incessantemente,
mas eu me agito, tusso
ouço e não ouço,
saio, volto e saio de novo.

Ela requer todo o meu tempo e atenção.
Quando durmo, é fácil para ela.
De dia já nem tanto, o que a magoa.

Me propõe zelosamente velhas cartas, fotos,
revolve fatos importantes e desimportantes,
devolve a vista para paisagens ignoradas,
e povoa-as com os meus mortos.

Nos seus relatos sou sempre mais jovem.
Isso é bom, mas por que sempre essa história?
Cada espelho me dá outras notícias.

Irrita-se quando dou de ombros.
E então se vinga remexendo todos os meus erros,
graves, mas que já não pesam.
Me olha nos olhos, espera minha reação.
Por fim me consola; podia ter sido pior.

Quer que agora eu viva só para ela e com ela.
De preferencia num quarto escuro e fechado,
mas nos meus planos ainda figuram o sol presente,
as nuvens atuais, as estradas correntes.

Às vezes fico farta de sua companhia.
Proponho nos separarmos. De hoje para sempre.
Então sorri com complacência,
sabe que também para mim seria uma condenação.

Trad.: Regina Przybycien

28 de mar. de 2022

MACHADO, António:: Proverbios y cantares

Nunca persegui a glória

nem preservar na memória

dos homens minha canção:

eu amo os mundos sutis,

sem gravidade e gentis

como bolhas de sabão.

É bom vê-los se pintando

de sol e pasto, voando

ao céu azul, tremulando

e de repente estourando.

........................


Nunca perseguí la gloria

ni dejar en la memoria

de los hombres mi canción;

yo amo los mundos sutiles,

ingrávidos y gentiles

como pompas de jabón.

Me gusta verlos pintarse

de sol y grana, volar

bajo el cielo azul, temblar

subitamente y quebrarse.


In:_____. Poesías completas. Madrid: Espasa-Calpe, 1983. 

21 de mar. de 2022

HEINE, Heinrich :: Uma garota, lá na praia


 John Lavery


Uma garota, lá na praia,

Acompanhando o pôr do sol,

Com olhos rasos d’água solta

Suspiros fundos e alguns ais.


Ora, garota, paciência!

É sempre a mesma velha história:

Agora o astro sai de cena –

De manhãzinha, está de volta.

.....................................

Das Fräulein stand am Meere

Und seufzte lang und bang,

Es rührte sie so sehre

Der Sonnenuntergang.


Mein Fräulein! seyn Sie munter,

Das ist ein altes Stück;

Hier vorne geht sie unter

Und kehrt von hinten zurück.



 In:_____. Heine, heim? Poeta dos contrários. Org. e trad. por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2011.

14 de mar. de 2022

Os deslembrados :: BRECHT, Bertolt

Van Gogh 

Eles vivem e morrem por aí –

Numa estrangeira viela

A vida com violência os atropela

E se põe a fugir.

Viveram e morreram e lutaram duro

E criaram suas crianças

E aí na mais distante deslembrança

Terminam seu percurso.

..........................

Die Vergessenen

 

Sie leben und sterben irgendwo

An einem fremden Steg

Das Leben geht vorüber roh

Und über sie hinweg.

Sie lebten und starben und rangen schwer

Und zogen Kinder auf

Und dann in ferner Vergessenheit hehr

Sie enden ihren Lauf.

"Die Vergessenen" / "Os deslembrados". In:_____. Bertolt Brecht: Poesia. Introdução e tradução por André Vallias. São Paulo: Perspectiva, 2019.

11 de mar. de 2022

TUDO ISSO HÁ DE COMEÇAR MAIS UMA VEZ :: Geir Gulliksen

Tudo isso há de começar mais uma vez

o livro que eu levava pra todo lado e lia

vai ser lido por outro alguém. Alguém há de aprender

a contar até dez pela primeira vez, depois até cem

e alguém há de aprender os dias da semana e assim há de saber

que a sexta-feira é o melhor e que o domingo é o pior dia da semana

porque domingo é o dia em que só fazemos esperar pela segunda-feira

e com a segunda-feira até a quinta-feira é impossível contar

se a gente trabalha o dia inteiro e fica sentado numa cadeira de noite

Porém, mesmo assim tudo isso há de começar mais um vez:

alguém há de sentar na escadaria sob essa luz sarapintada

tentando escrever um poeminha num pedaço de papel

e alguém há de aprender a pedalar,

e alguém há de ler que o universo encontra-se em expansão

e sobre sóis que só sabem seguir explodindo

e alguém há de estudar hebraico antigo e ornitologia

e passear à noitinha com as mãos no bolso do casaco

sabendo que há de morrer, mas não já já

antes outro alguém há de se apaixonar por ele, tomara,

e depois alguém há de deixá-lo, mas não já já

pois tudo isso há de começar mais uma vez: alguém há de ler

Pablo Neruda pela primeira vez, e Osip Mandelstam

e Bertholt Brecht, alguém há de ler Wisława Szymborska

e alguém há de descobrir quantos somos nós todos que vivemos nesse mundo

e de repente há de entender que cada um de nós é um indivíduo

mesmo que não haja individualismo suficiente para todos

e mesmo que não seja verdade que todas as pessoas

têm o mesmo valor, alguém há de aprender isso e crer nisso

até que não seja mais possível seguir crendo nisso

pois isso não parece ser verdade

pois isso não parece possível de se realizar

mesmo que não seja possível crer em mais nada além do fato

de a escuridão escalar os vários andares

e de a escuridão um dia chegar aos teus pés

e de tu um dia vadear nela e de ela chegar até as tuas mãos

e gritar na escuridão e beber a escuridão, não por que tens sede

mas porque não há mais nada senão ela, e porque aquela velha

luz sarapintada que não havia era suficiente para todos

não é mesmo? mas tudo isso há de ser repetido por outro alguém

e a luz dispara sem parar cruzando a escuridão

de 300.000 quilômetros e leva menos tempo para te achar do que um gato esquelético

enquanto estás ali parado tentando achar as chaves no bolso do casaco

e tudo o que te acontece acontece creias ou não creias que seja verdade

7 de mar. de 2022

Nossa porção de noite: DICKINSON, Emily


Grant Glendinning

Nossa porção de noite —

Nossa porção de aurora —

Nossa ausência de amor —

Nossa ausência de agrura —


Uma estrela, outra estrela

Que se extravia!

Uma névoa, outra névoa,

Depois – o Dia!

...........................

Our share of night to bear –  

Our share of morning –  

Our blank in bliss to fill 

Our blank in scorning –  

 

Here a star, and there a star,      

Some lose their way! 

Here a mist, and there a mist, 

Afterwards – day!


In:_____. não sou ninguém. Traduções de Augusto de Campos. Campinas: Unicamp, 2015.

5 de mar. de 2022

Wisława Szymborska: As três palavras mais estranhas

Quando pronuncio a palavra Futuro,
a primeira sílaba já se perde no passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
suprimo-o.

Quando pronuncio a  palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não ser.


"Instante". In:_____. Poemas. Trad. Regina Przybycien. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

28 de fev. de 2022

Metade :: CALCANHOTO, Adriana.

Eu perco o chão

Eu não acho as palavras

Eu ando tão triste 

Eu ando pela sala

Eu perco a hora, 

Eu chego no fim

Eu deixo a porta aberta

Eu não moro mais em mim


             Eu perco as chaves de casa

Eu perco o freio

Estou em milhares de cacos, 

Eu estou ao meio

Onde será que você está 

Agora?


 In: REIS-SÁ, Jorge (org.). Creio que foi o sorriso . Uma antologia. A Casa dos Ceifeiros, 2020.