24 de nov. de 2024

Dies Irae :: Clarice Lispector


Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece. E nem ao menos posso fazer o que uma menina semiparalítica fez em vingança: quebrar um jarro. Não sou semiparalítica. Embora alguma coisa em mim diga que somos semiparalíticos. E morre-se, sem ao menos uma explicação. E o pior – vive-se, sem ao menos uma explicação. E ter empregadas, chamemo-las de uma vez de criadas, é uma ofensa à humanidade.

E ter a obrigação de ser o que se chama de apresentável me irrita. Por que não posso andar em trapos, como homens que às vezes vejo na rua com barba até o peito e uma bíblia na mão, esses deuses que fizeram da loucura um meio de entender? Eu por que, só porque eu escrevi, pensam que tenho que continuar a escrever? Avisei a meus filhos que amanheci em cólera, e que eles não ligassem. Mas eu quero ligar. Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse com o tendão tenso que sustenta meu coração.

E os que desistem? Conheço uma mulher que desistiu. E vive razoavelmente bem: o sistema que arranjou para viver é ocupar-se. Nenhuma ocupação lhe agrada. Nada do que eu já fiz me agrada. E o que eu fiz com amor estraçalhou-se. Nem amar eu sabia, nem amar eu sabia. E criaram o Dia dos Analfabetos. Só li a manchete, recusei-me a ler o texto. Recuso-me a ler o texto do mundo, as manchetes já me deixam em cólera. E comemora-se muito. E guerreia-se o tempo todo. Todo um mundo de semiparalíticos. E espera-se inutilmente o milagre. E quem não espera o milagre está ainda pior, ainda mais jarros precisaria quebrar. E as igrejas estão cheias dos que temem a cólera de Deus. E dos que pedem a graça, que seria o contrário da cólera.

Não, não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E acho certo roubar para comer. – Acabo de ser interrompida pelo telefonema de uma moça chamada Teresa que ficou muito contente de eu me lembrar dela. Lembro-me: era uma desconhecida, que um dia apareceu no hospital, durante os quase três meses onde passei para me salvar do incêndio. Ela se sentara, ficara um pouco calada, falara um pouco. Depois fora embora. E agora me telefonou para ser franca: que eu não escreva no jornal nada de crônicas ou coisa parecida. Que ela e muitos querem que eu seja eu própria, mesmo que remunerada para isso. Que muitos têm acesso a meus livros e que me querem como sou no jornal mesmo. Eu disse que sim, em parte porque também gostaria que fosse sim, em parte para mostrar a Teresa, que não me parece semiparalítica, que ainda se pode dizer sim.

Sim, meu Deus. Que se possa dizer sim. No entanto neste mesmo momento alguma coisa estranha aconteceu. Estou escrevendo de manhã e o tempo de repente escureceu de tal forma que foi preciso acender as luzes. E outro telefonema veio: de uma amiga perguntando-me espantada se aqui também tinha escurecido. Sim, aqui é noite escura às dez horas da manhã. É a ira de Deus. E se essa escuridão se transformar em chuva, que volte o dilúvio, mas sem a arca, nós que não soubemos fazer um mundo onde viver e não sabemos na nossa paralisia como viver. Porque se não voltar o dilúvio, voltarão Sodoma e Gomorra, que era a solução. Por que deixar entrar na arca um par de cada espécie? Pelo menos o par humano não tem dado senão filhos, mas não a outra vida, aquela que, não existindo, me fez amanhecer em cólera.

Teresa, quando você me visitou no hospital, viu-me toda enfaixada e imobilizada. Hoje você me veria mais imobilizada ainda. Hoje sou a paralítica e a muda. E se tento falar, sai um rugido de tristeza. Então não é cólera apenas? Não, é tristeza também.

A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

Imagem GREGORY PROCH

16 de nov. de 2024

Assombro ::Cristina Peri Rossi (Montevidéu, 12 de novembro de 1941)

 

 

Ensina-me, dizes, dos teus vinte e um anos

ávidos, acreditando, ainda, que algo pode ser ensinado


e eu, que passei dos sessenta

te olho com amor

isto é, com lonjura

(todo amor é amor às diferenças

ao espaço vazio entre dois corpos

ao espaço vazio entre duas mentes

ao horrível pressentimento de não morrer a dois)


Ensino-te, vagarosamente, alguma citação de Goethe

(“Detém-te, instante, és tão belo")

ou de Kafka (uma vez houve, houve uma vez

uma sereia que não cantou)


enquanto a noite desliza lentamente em direção ao amanhecer

através desta grande janela

que amas tanto

porque as luzes noturnas

ocultam a verdadeira cidade


e em realidade poderíamos estar em qualquer parte

essas luzes poderiam ser as de Nova York,

avenida Broadway, as de Berlim, Konstanzerstrasse,

as de Buenos Aires, calle Corrientes


e te oculto a única coisa que verdadeiramente sei:

só é poeta quem sente que a vida não é natural

que é espanto

descobrimento revelação

que não é normal estar vivo


não é natural ter vinte e um anos

nem tampouco mais de sessenta


não é normal ter andado às três da manhã

pela velha ponte de Córdoba, Espanha, sob a luz

amarela das lâmpadas de rua,


não é natural o perfume das laranjeiras nas praças

— três da manhã —


 nem em Oliva nem em Sevilha


 o natural é o assombro


 o natural é a surpresa


 o natural é viver como recém-chegada

 

ao mundo


aos becos de Córdoba e seus arcos


às praças de Paris


à umidade de Barcelona


ao museu de bonecas


no carro velho estacionado


nas estradas mortas de Berlim.


O natural é morrer


sem ter andado de mãos dadas


através dos portais de uma cidade desconhecida


nem ter sentido o perfume das flores brancas dos jasmineiros em flor


às três da manhã,


meridiano de Greenwich


o natural é que quem tenha andado de mãos dadas


através dos portais de uma cidade desconhecida


não o escreva


enterre-o no caixão do esquecimento


A vida brota em todos os lugares


consanguínea


bêbada


bacante exagerada


em noites de paixões turvas


mas havia uma fonte que gorgolejava


languidamente


e era difícil não sentir que a vida pode ser bonita


às vezes


como uma pausa


como uma trégua que a morte

 

concede ao gozo.


.....

 Enséñame - dices, desde tus veintiún años

ávidos, creyendo, todavía que se puede enseñar alguna cosa
y yo, que pasé de los sesenta
te miro con amor
es decir, con lejanía
(todo amor es amor a las diferencias
al espacio vacío entre dos cuerpos
al espacio vacío entre dos mentes
al horrible presentimiento de no morir de a dos)
 
te enseño, mansamente, alguna cita de Goethe
(“detente, instante, eres tan bello")
o de Kafka (una vez hubo, hubo una vez
una sirena que no cantó)
 
mientras la noche lentamente se desliza hacia el alba
a través de este gran ventanal
que amas tanto
porque sus luces nocturnas
ocultan la ciudad verdadera
 
y en realidad podríamos estar en cualquier parte
estas luces podrían ser las de New York, avenida
Broadway, las de Berlín, Konstanzerstrasse,
las de Buenos Aires, calle Corrientes
 
y te oculto la única cosa que verdaderamente sé:
sólo es poeta aquel que siente que la vida no es natural
que es asombro
descubrimiento revelación
que no es normal estar vivo
no es natural tener veintiún años
ni tampoco más de sesenta

no es normal haber caminado a las tres de la mañana
por el puente viejo de Córdoba, España, bajo la luz
amarilla de las farolas,
no es natural el perfume de los naranjos en las plazas
-tres de la mañana-
ni en Oliva ni en Sevilla
lo natural es el asombro
lo natural es la sorpresa
lo natural es vivir como recién llegada
al mundo
a los callejones de Córdoba y sus arcos
a las plazas de París
a la humedad de Barcelona
al museo de muñecas
en el viejo vagón estacionado
en las vías muertas de Berlín
 
Lo natural es morirse
 
sin haber paseado de la mano
por los portales de una ciudad desconocida
ni haber sentido el perfume de los blancos jazmines en flor
a las tres de la mañana,
meridiano de Greenwich
 
lo natural es que quien haya paseado de la mano
por los portales de una ciudad desconocida
no lo escriba
lo hunda en el ataúd del olvido
 
La vida brota por todas partes
consanguínea
ebria
bacante exagerada
en noches de pasiones turbias
pero había una fuente que cloqueaba
lánguidamente


y era difícil no sentir que la vida puede ser bella a veces
como una pausa
como una tregua que la muerte
le concede al goce.
 

CRISTINA PERI ROSSI
Detente, instante eres tan bello
(2021)

Gregório Gruber (1951 Brasil / São Paulo / Santos)

 




























15 de nov. de 2024

Dicionários do meu pai : Chico Buarque de Holanda



Pouco antes de morrer, meu pai me chamou ao escritório e me entregou um livro de capa preta que eu nunca havia visto. Era o dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Ficava quase escondido, perto dos cinco grandes volumes do dicionário Caldas Aulete, entre outros livros de consulta que papai mantinha ao alcance da mão numa estante giratória. Isso pode te servir, foi mais ou menos o que ele então me disse, no seu falar meio grunhido. Era como se ele, cansado, me passasse um bastão que de alguma forma eu deveria levar adiante. E por um bom tempo aquele livro me ajudou no acabamento de romances e letras de canções, sem falar das horas em que eu o folheava à toa; o amor aos dicionários, para o sérvio Milorad Pavic, autor de romances-enciclopédias, é um traço infantil no caráter de um homem adulto.

Palavra puxa palavra, e escarafunchar o dicionário analógico foi virando para mim um passatempo (desenfado, espairecimento, entretém, solaz, recreio, filistria). O resultado é que o livro, herdado já em estado precário, começou a se esfarelar nos meus dedos. Encostei-o na estante das relíquias ao descobrir, num sebo atrás da Sala Cecília Meireles, o mesmo dicionário em encadernação de percalina. Por dentro estava em boas condições, apesar de algumas manchas amareladas, e de trazer na folha de rosto a palavra anauê, escrita a caneta-tinteiro.

Com esse livro escrevi novas canções e romances, decifrei enigmas, fechei muitas palavras cruzadas. E ao vê-lo dar sinais de fadiga, saí de sebo em sebo pelo Rio de Janeiro para me garantir um dicionário analógico de reserva. Encontrei dois, mas não me dei por satisfeito, fiquei viciado no negócio. Dei de vasculhar livrarias país afora, só em São Paulo adquiri meia dúzia de exemplares, e ainda arrematei o último à venda na Amazon.com antes que algum aventureiro o fizesse. Eu já imaginava deter o monopólio (açambarcamento, exclusividade, hegemonia, senhorio, império) de dicionários analógicos da língua portuguesa, não fosse pelo senhor João Ubaldo Ribeiro, que ao que me consta também tem um, quiçá carcomido pelas traças (brocas, carunchos, gusanos, cupins, térmitas, cáries, lagartas-rosadas, gafanhotos, bichos-carpinteiros).

A horas mortas, eu corria os olhos pela minha prateleira repleta de livros gêmeos, escolhia um a esmo e o abria a bel-prazer. Então anotava num Moleskine as palavras mais preciosas, a fim de esmerar o vocabulário com que eu embasbacaria as moças e esmagaria meus rivais.

Hoje sou surpreendido pelo anúncio desta nova edição do dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Sinto como se invadissem minha propriedade, revirassem meus baús, espalhassem aos ventos meu tesouro. Trata-se para mim de uma terrível (funesta, nefasta, macabra, atroz, abominável, dilacerante, miseranda) notícia


Revista Piauí 

Francisco Buarque de Hollanda | Edição 45, Junho 2010 edição 45



6 de nov. de 2024

NÃO: JÁ NÃO FALO DE TI :: Cecília Meireles

Não: já não falo de ti, já não sei de saudades.

Feche-se o coração como um livro, cheio de imagens,
de palavras adormecidas, em altas prateleiras,
até que o pó desfaça o pobre desespero sem força,
que um dia, pode ser, parece tão terrível.

A aranha dorme em sua teia, lá fora, entre a roseira e o muro.
Resplandecem os azulejos- e tudo quanto posso ver.
O resto é imaginado, e não coincide, e é temerário
cismar. Talvez se as pálpebras pudessem
inventar outros sonhos, não de vida...

Ah! rompem-se na noite ardentes violas,
pelo ar e pelo frio subitamente roçadas.
Por onde pascerão, nestes céus invioláveis,
nossas perguntas com suas crinas de séculos arrastando-se...
Não só de amor a noite transborda mas de terríveis
crueldades, loucuras, de homicídios mais verdadeiros.

Os homens de sangue estão nas esquinas resfolegando,
e os homens da lei sonolentos movem letras
sobre imensos papéis que eles mesmos não entendem...
Ah! que rosto amaríamos ver inclinar-se na aérea varanda?
Nem os santos podem mais nada. Talvez os anjos abstratos
da álgebra e da geometria.

2 de nov. de 2024

os vivos morrem logo são os mortos que morrem devagar :: Mar Becker

os vivos morrem logo

são os mortos que morrem devagar


são os mortos que seguem morrendo depois que os velamos, que os enterramos

passam-se dias, e ainda há fios de cabelo espalhados pela casa

passam-se meses, e ainda vemos o livro

o marcador guardando o fogo da última página lida

passam-se anos, e descobrimos na gaveta as palavras escritas, os papéis


são lentos, os mortos

são lentos, como é lento o amor

como é lento reconhecer uma letra, que nos faz pensar nas mãos

como é lento imaginar as mãos, que lembram o pulso

como é lento pressentir o pulso, que nos atravessa

como sangue


em uma hora de hemorragia intensa os vivos perdem todo o sangue dos seus corpos

os mortos no entanto se demoram, habitam a casa pelo meio

no mênstruo das mulheres, no silêncio partilhado entre mãe e filha

entre duas irmãs


e topamos com seus rostos através de outros rostos

não só os da família, mas também daqueles que cruzam por nós na rua

e que não conhecemos


sempre acabamos encontrando nossos mortos por aí

eles acham jeito de voltar

de permanecer

eles acham jeito de surgir num sorriso

na cor que certos olhos assumem em tardes mais luminosas

num gesto breve

qualquer


os mortos, os mortos

tão vivos


---


mar becker 

em: "os mortos, os mortos", caderno em trabalho (em feitura); 2017/23

O LIVRO DOS DESENLACES :: Marcílio Godoi

Chega um dia, aliás, chega uma noite, mais precisamente. Chega uma hora afinal em que começamos a desconfiar ou bem nos damos conta em definitivo, que certos lugares pelos quais passamos, como os objetos perdidos nos táxis ou como o brilho das berinjelas pelo cesto, ou ainda, como com algumas pessoas com que cruzamos pelos elevadores, estamos todos nos olhando pela última vez. Tudo está em não saber o tempo todo disso: que a vida gira em torno de seus próprios desfechos.

Por mais dramático ou triste que isso pareça, a sensação não é ruim. É certo que as coisas, os primos queridos, um tio-avô, aquela tia torta, o vendedor de panos de prato no semáforo, a moça dos Correios, a dona na janela do coletivo e mesmo alguns edifícios e até cidades inteiras, países, chega um momento em que nos olham fundo como se a nos dizer algo urgente e silencioso, quase sedutor: adeus.

Vamos ver e é mesmo sobre essa espécie tão frágil e única de beleza que estão nos falando, uma alma que habita a entrega dos instantes que precedem todo encontro, todo convívio, toda partida: seu próprio fim.

Um dia nos chega enfim essa noite tão clara, essa notícia tão branca que cega, tão fácil de entender: compomos uma fileira sem fim de pessoas acenando do alto seu próprio remate, sua solução definitiva.

Dos pais, irmãos, amigos, os mais queridos, enfim, nem é bom lembrar que chegará esse instante. Transitórios que somos, sempre nos chegará esse tempo, o de nos vermos limpidamente nesse lugar de passagem. E então nos é dado enxergar de vez, de chofre, o óbvio: que nenhum sol nasce duas vezes.



1 de nov. de 2024

Carlos Drummond de Andrade A Bruxa


Eduardo Duvivier


Nesta cidade do Rio,

De dois milhões de habitantes,

Estou sozinho no quarto

Estou sozinho na América.


Estarei mesmo sozinho?

Ainda há pouco um ruído

Anunciou vida a meu lado.

Certo não é vida humana,

Mas é vida. E sinto a bruxa

Presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!

E nem precisava tanto...

Precisava de um amigo,

Desses calados, distantes,

Que leem verso de Horácio

Mas secretamente influem

Na vida, no amor, na carne.

Estou só, não tenho amigo,

E a essa hora tardia

Como procurar amigo?


E nem precisava tanto.

Precisava de mulher

Que entrasse nesse minuto,

Recebesse este carinho,

Salvasse do aniquilamento

Um minuto e um carinho loucos

Que tenho para oferecer.


Em dois milhões de habitantes,

    Quantas mulheres prováveis

Interrogam-se no espelho

Medindo o tempo perdido

Até que venha a manha

Trazer leite, jornal e calma.

Porém a essa hora vazia

Como descobrir mulher?


Esta cidade do Rio!

Tenho tanta palavra meiga,

Conheço vozes de bichos,

Sei os beijos mais violentos,

Viajei, briguei, aprendi.

Estou cercado de olhos,

De mãos, afetos, procuras.

Mas me tento comunicar-me,

O que há é apenas a noite

E uma espantosa solidão.


Companheiros, escutai-me!

Essa presença agitada

Querendo romper a noite

Não é simplesmente a bruxa.

É antes a confidência

Exalando-se de um homem.


Carlos Drummond de Andrade

POEMA ESQUISITO :: Adélia Prado

 

"Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.

Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.

Ninguém tem culpa.

Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,

não existe mais o modo

de eles terem seus olhos sobre mim.

Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?

É dentro de mim que eles estão.

Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.

Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,

que abunda nos cemitérios.

Quem plantou foi o vento, a água da chuva.

Quem vai matar é o sol.

Passou finados não fui lá, aniversário também não.

Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?

É de tanto lembrá-los que eu não vou.

Ôôôô pai

Ôôôô mãe

Dentro de mim eles respondem

tenazes e duros,

porque o zelo do espírito é sem meiguices:

Ôôôôi fia.


Adélia Prado

29 de out. de 2024

Amar :: Mar Becker (Passo Fundo (RS)

amar o homem que tu és

amar o homem que tu és apesar do homem

amar sabendo que um homem pode se perder no amor – mas não uma mulher

nunca uma mulher

amar-te, meu amor

mas sem esquecer que a mulher de nós dois sou eu

.

eu não posso me esquecer das tantas outras

não posso esquecer eva

não posso esquecer agar no deserto com um bebêno colo

as centenas de caminhantes que vêm e vão por são paulo, não posso esquecê-las

as manhãs em que as vejo na estação do metrô, não raramente

puxando ou sendo puxadas – nunca sei dizer

pela mão de alguma criança

.

(porque os tempos mudam, mas as mulheres permanecem as mesmas

porque são ainda todas aquela mesma moça no deserto


aqueles mesmos olhos áridos que no entanto terminam o dia

querendo chorar um rio)

.

meu amor, somos tão sozinhas

não posso te amar sem ressalvas

sem lembrar o tempo todo que no fundo só temos umas às outras

ninguém mais

ni una menos


não esquecerei joana, queimada em praça pública

a beata lindalva

a virgem maria teresa goretti


não devo esquecer quantos litros de sangue uma mulher deve perder

para que cesse o pulso

e assim sem pulso possa finalmente ser considerada santa pela nossa santa igreja


tu falas da tua paixão por aves

eu também gosto de observá-las

há noites em que fico mais de hora sentada à soleira da porta, nos fundos de casa

olho o copado da jabuticabeira

a roupa no varal


muitas de nós ainda passam noites em claro pelas mulheres de salém

sou uma delas


sei que é preciso cuidar para que corpos inteiros não sejam comidos da nossa memória


se vierem graúnas, em bandos


e arrancarem a bicadas os fios do seu cabelo, para fazerem ninhos


se vierem beija-flores e furarem seus olhos, para beberem do rio


se quiserem levar também os cílios, os pelos do sexo, até lascas de unha – que levem


mas é preciso cuidar para que pelo menos uma parte do corpo de toda mulher morta reste intacta

o coração


o projeto de libélula que ardeu em algum dos seus gestos


o nome


o silêncio

.

a mim não cabe amar inadvertidamente


não posso esquecer as últimas horas de eloá


o carro em que marielle estava na noite de 14 de março de 2018


uma mulher a cada duas horas no brasil


seis mulheres a cada hora no mundo


não esquecerei micheliny, filha da filha da índia que foi pega no laço – como um animal


não esquecerei nina, que não esquecerá bruna


ambas se erguendo da mesma noite


não esquecerei bárbara, o olho roxo, a costela trincada


não esquecerei minha irmã

minha mãe

minha avó, morta com um tiro no peito

.


tu dizes que me amas, eu digo que te amo mais


eu te amo mais, meu amor


porque tu me amas com amor apenas

mas eu tive que aprender a te amar com ódio


 

14 de out. de 2024

Transporta o céu para o chão – Crônica :: Stanislaw Ponte Preta


Era um mendigo seresteiro, um misto de coitado e boêmio, que bebeu um pouco mais e ficou alegre. Ora, a alegria de um mendigo resume-se num canto romântico misturado aos palavrões da revolta, único lenitivo para suas amarguras. Os mendigos, em geral, não dizem palavrão, porque vivem da caridade pública. Mas este, de Salvador, Cidade do São Salvador, Bahia, tinha bebido umas e outras, talvez com outros humildes como ele, no cais dos saveiros, talvez numa tendinha da beira da praia. Isto não ficou esclarecido.

Sabia-se apenas que era um mendigo que — de repente — virou seresteiro e saiu cantando pelas ruas do Salvador, subindo e descendo suas ladeiras, momentaneamente alegre:

— “A Deusa/ da minha rua/ tem os olhos onde a lua costuma se embriagar” — cantava ele.

Depois parava, meditava sobre o que cantara, sorria e dizia seu sonoro e honesto palavrão:

— Quem costuma se embriagar sou eu, ora… – e arrematava com o palavrão. E lá ia cantando: — “Nos seus olhos eu suponho que o sol/ num doirado sonho/ vai claridade buscar.”

Cantando. O mendigo chegou a uma praça e parou encantado em frente a uma casa. Era uma casa muito grande, parecia um palácio e todo bêbado é um rei. Ele deve ter imaginado uma seresta para sua rainha e cantou:

— “Na rua/ uma poça d’água/ espelho da minha mágoa/ transporta o céu para o chão.”

Outra vez sorriu e outra vez praguejou seus palavrões. Foi então que um homem, vivendo ali seus dias e suas noites, isolado das misérias do mundo, sem mais um resto de temperança, de compreensão, achou que o mendigo estava lhe faltando com o respeito e chamou a polícia.

Pombas! A polícia. Esta mesmo é que não ia compreender nunca o sonho do mendigo-rei. Chegou e tentou agarrá-lo à força.

– Assim não — gritou o intrépido monarca. — Assim não.

Mas o policial insistiu e deu-lhe um tranco. O rei foi magnífico na sua dignidade, esfregando um bofetão certeiro e merecido nas fuças do policial. Um companheiro do esbofeteado sacou da arma e fez fogo. Morreu o rei, morreu o seresteiro, morreu o mendigo.

Caiu desfalecido na calçada, veio-lhe uma estranha impressão e ele morreu: “Na rua/ uma poça d’água/ […]/ transporta o céu para o chão” – cantara ele ainda há pouco. Mas desta vez não. A poça era de sangue.

 

11 de out. de 2024

UM HOMEM E UMA PORTA :: K. Satchidanandan ( india, 1946)

Um homem carrega uma porta

pela rua fora.

Procura a sua casa.


Ele sonhou

com a mulher, filhos e amigos,

a entrarem através daquela porta.

Agora vê o mundo todo,

a entrar através da porta

da sua casa ainda por construir:

homens, veículos, árvores,

animais, pássaros, tudo.


E a porta, o seu sonho

erguendo-se acima da terra,

anseia ser a porta dourada do paraíso.

Imagina nuvens, arco-íris,

demónios, fadas e santos

passando através dela.


Mas é o senhor do inferno

quem guarda a porta.

E agora deseja apenas ser uma árvore

cheia de folhas,

ondulando na brisa,

para providenciar alguma sombra,

ao seu carregador sem abrigo.


Um homem carrega uma porta

ao longo da rua.

Um homem e uma estrela.

4 de out. de 2024

Um Cão, Apenas :: Cecília Meireles

      Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. E um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pêlo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...

        Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.

        Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens.

        Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.

        Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era o seu.

        Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.

Inéditos – crônicas. Rio de Janeiro, Bloch, 1967. p. 19-20

30 de set. de 2024

A noite em que encontrei Chagall. :: Angela Becker

Num certo natal, ganhei um livro do pintor Marc Chagall

suas cores de vitral, topázios, ametistas

choveram sobre mim

como nunca houve notícia

e compreendi, afinal,

toda a ternura começara neste artista.

.


Um delírio de cores

formava à minha volta

uma iluminura


escancarei a janela 

pra que a noite e seu luar

entrassem por ela


Ah como queria de Chagall uma aquarela!

queria mais, queria que ele me pintasse numa tela

.

Acreditei que bastasse eu desejar muito, muito

e ele viria

e eu pedia, noite e dia, eu pedia


.


E eis que numa noite dessas

muito estrelada

sem alarde nem trombetas

chegaram dois de seus anjos violetas:

-Chagall virá esta noite, disseram, com voz nacarada

-Obrigada, respondi

quase esquecendo a etiqueta.

.


e saí para a noite de diamantes bordada

ele virá flutuante, amante que é de flutuar

descerá pela via láctea

e pousará neste gramado verde-esmeralda

.

escutei murmúrios e adejar de asas

são seus anjos, seus bois bizantinos,

casas, cristos e rabinos

.

a noite era como devia ser: sagrada

uma lua prateada derramava leite de madona lactante

desci as escadas

trazia comigo um turbante,

flores e um peito arfante

.


e eis que o vejo

já dispondo as cores no cavalete

ele não falava, não precisava

.


ajeito-me como maja desnuda

sobre o fino tecido que desliza

.

ele me estuda

.

partes de mim se adelgaçam,

partes de mim se arredondam

tudo está preparado para o evento.

.

e assim Chagall começa seu fino lavor

habilidosamente

e sou, então, transferida para a tela

enfim, definitivamente.

...........


imagem: Marc Chagall


20 de set. de 2024

Marina Tsvetáeva ::Com muita ternura

Com muita ternura — porque

Em breve a todos deixarei —

Estou pensando quem

Herdará a pele de lobo,


Quem — herdará o xale macio

E o bastão fino com um galgo,

Quem — herdará minha pulseira prateada,

Polvilhada com turquesa…


E todos — os papéis, e todas — as flores,

Que eu não consegui — guardar…

Minha última rima — e tu,

Minha última noite!

18 de set. de 2024

Ingeborg Bachmann :: uma espécie de perda

Usamos a dois: estações do ano, livros e uma música.

As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma

cama.

Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados,

gastos.

Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissemos. Fizemos.

E estendemos sempre a mão.


Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por

Verões.

Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma

cama.

Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,

idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,


(– o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um aponta-

mento)

sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.


De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.

Da varanda podia saudar os povos, meus vizinhos.

Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor

mais intensa.

A campainha da porta era o alarme da minha alegria.


Não te perdi a ti,

perdi o mundo. 



16 de set. de 2024

SÁNDOR CSOÓRI :: POEMA A DUAS MULHERES AO MESMO TEMPO

Vocês vêm, tocam a campainha,

passando a maçaneta rapidamente de uma para a outra.

Tu, loira, enlutada, de preto,

ela em saia azul de jeans, puída,

como quem após semanas molhadas até aos ossos

estivesse a enxugar-se no Maio inteiro num topo de colina.

Contigo vem também o bosque, também o cemitério,

países, com uma sensualidade oculta,

o mel,

a imprecação;

a anarquia reprimida do álcool

e enxames de moscas loucas

que dançam loucamente sobre a tua cabeça.

E não há Inverno, se vires, não há Verão,

há só febre dentro das costelas, imenso azul

e palavras a despirem-se na boca.

Ela chega sempre de improviso, apenas como quem traz

uma boa nova, como se trouxesse notícias de si própria.

A sua pestana: caniço preto,

em redor das suas ancas de uma vez duas Primaveras

e a sua boca abre-se para sorrir: como se um

comboio branco

passasse silenciosamente.


Vocês vêm, tocam a campainha, rindo uma para a outra

não suspeitando quem é que é a outra:

se amiga, companheira?

se amiga, amante?

mulher de limpeza dos sonhos?

pois as vossas caras só eu as enfrento, egoisticamente,

e brinco, ocultamente, com as vossas mãos também

na mesma cama,

ao mesmo tempo,

na mesma ausência -

das covas secas do mundo

ponho-me a rir, separadamente, por vosso gosto

e não me entristece ser isso uma condenação:

na minha morte serei,

sem falta, indivisível.


Tradução: Pál Ferenc






9 de set. de 2024

CASA DO SOL :: Adriane Garcia

 O corpo velho vai se desmanchando

Em ruga flacidez os ossos perdendo

Três a cinco por cento de massa ao ano


Um saco de pele com a estrutura

Porando estuporando osteoporando-se

E a alma a mesma presa procurando


Aquela casa que já foi iluminada

Por fora

Que continua cheia de luz por dentro.


1 de set. de 2024

Delírio:: Líria Porto


delírio


minha alma gêmea ela mora em marte

e vagueia solta por entre as estrelas

se há tempestade ou um pé de vento

vem ela dormir em meu travesseiro


minha alma gêmea dança tão bonito

quando é lua cheia sou eu quem vai lá

rodopiamos doidos pela via láctea

às vezes perdemo-nos pelo infinito


nas noites escuras deixo a porta aberta

minha alma gêmea vem aqui me ver

leva-me consigo voo em sua nave

só a minha casca fica presa à terra


minha alma gêmea fez-me prometer

quando ela puder quando eu precisar

vai me transportar carregar meu corpo

vou morar em marte de uma vez por todas


acaso ouças risos ou vozes alegres

barulho de guizos ou de cachoeira

é minha alma gêmea a brincar comigo

a contar-me histórias sobre a lua cheia


então eu te peço – não chores

abre a janela


* líria porto